15 setembro 2010

Amílcar Cabral fala aos portugueses

Conferência de Kartum (Sudão) em Janeiro de 1969.
Conf. de solidariedade para com os povos das colónias portuguesas, a qual servirá de base à preparação da Conferência de Roma, onde Amílcar Cabral desempenha um papel fundamental e decisivo.

Amílcar Cabral fala aos portugueses

"A Conferência de Kartun marca quanto a nós, uma etapa da nossa luta em relação à opinião pública internacional. Até agora não tinha ainda havido uma reunião deste género com objectivo de informar os representantes da opinião pública anti-colonialista nomeadamente da Europa e da América sobre o avanço das nossas lutas, sobre a situação concreta dos nossos países e sobre a atitude negativa, digamos mesmo, criminosa do governo português colonialista.
Estamos convencidos de que atingiremos os objectivos visados pela Conferência. A partir deste momento a opinião pública internacional, mais bem informada, poderá tomar medidas concretas no sentido de mostrar a sua solidariedade em relação à luta dos povos africanos das colónias portuguesas.
Claro que nós, na Guiné e em Cabo-Verde, damos às conferências o valor que realmente têm, e por isso, não esperamos mais delas do que aquilo que podem dar-nos porque acreditamos que cada povo deve esforçar-se e bater-se para reconquistar a sua dignidade de povo soberano e dono dos seus destinos.
Tendo isto presente, consideramos que o apoio internacional é muito importante, designadamente neste caso em que o governo colonialista português é o braço forte da engrenagem capitalista que quer sufocar os movimentos de libertação africanos.
Relativamente à libertação de prisioneiros de guerra efectuada pelo PAIGC, quero dizer que para o nosso povo da Guiné e Cabo-Verde, para os nossos combatentes em geral, o facto de termos libertado na altura do Natal mais três prisioneiros de guerra portugueses não constitui nada de novo e está na linha da nossa política. Nós sempre afirmamos, claramente, que nunca confundimos o povo de Portugal com o colonialismo português.
Já em Março de 1968 tínhamos libertado três outros prisioneiros de guerra. Achamos que valia a pena liberta na quadra do Natal mais três. Este gesto para com o povo português demonstra também ao mundo que o governo colonialista de Portugal mente quando, afirma que nós somos bandidos, terroristas e povo selvagem.
Aos três prisioneiros que libertamos manifestamos o nosso, desejo, que encontrassem as suas famílias e lhes falassem de nós, para de qualquer modo e, apesar dos crimes do governo colonialista se manterem os laços entre o povo de Portugal e o nosso povo.
Evidentemente que quando um governo chega à situação em que está o governo português tem de se mentir e mentir muito.
Isto compreende-se mas não pode aceitar-se.

Se os comunicados de guerra do governo fascista, querendo esconder a existência de prisioneiros afirmam que morreram ou desapareceram soldados que depois "milagrosamente" aparecem, uma conclusão há a tirar de tal mentira. É que o governo português não tem consideração para com o seu povo a quem mente grosseiramente, nem pelos jovens que à custa de sacrifícios e da própria vida se batem na nossa terra ingloriamente, numa guerra criminosa.
Não consideramos que um prisioneiro de guerra merece respeito, pois está dando a sua vida, quer defenda ou não uma causa justa. Por isso chamamos a atenção do povo e dos patriotas portugueses para que forcem o governo a respeitar o mínimo das normas internacionais que regulam a situação dos prisioneiros de guerra.
Mas muita gente pensou que o desaparecimento político de Salazar significava, pelo menos para o governo de Portugal, uma modificação, no quadro do respeito pelas leis internacionais e sobretudo de defesa dos interesses do povo português.
Salazar pela sua mentalidade obstinadamente fechada às realidades do mundo de hoje, conduziu uma política que o precipitou no buraco tremendo da guerra colonial.
Mas nada teria obrigado Marcelo Caetano a entrar no mesmo buraco. É conscientemente numa atitude verdadeiramente criminosa que ele prossegue a política colonial de Salazar. Para se justificar, porém, dessa atitude Marcelo Caetano tem de inventar "Histórias do arco da velha", como se diz em Portugal.
A história de que nós estamos a lutar para fazer da Guiné uma base para entregar Cabo-Verde aos comunistas, significa que Marcelo Caetano julga que ainda pode enganar os Portugueses.
Estamos convencidos que o povo português não se deixa enganar e nós e os patriotas portugueses cá estamos para pôr as coisas no seu devido lugar.
Nós lutamos de facto para libertar a Guiné e Cabo-Verde afim de que os nossos povos tenham a possibilidade decidir os seus próprios destinos.

Repetimos o que muitas vezes temos afirmado: nós queremos libertar a nossa terra para criar uma vida nova de trabalho, justiça, paz e progresso em colaboração com todos povos do mundo e muito particularmente com o povo português. O que Marcelo Caetano teme é que o povo português saiba que a Guiné e Cabo-Verde são parcelas duma África livre e independente e qualquer delas aberta a uma colaboração franca e leal com o povo de Portugal.
Batendo-nos até à libertação total da nossa terra, não perdemos de vista um objectivo que consideramos de importância para o nosso povo, a colaboração e cooperação futura com o povo de Portugal.
Quando Marcelo Caetano que hãode defender, custe o que custar, a Guiné, pensa na vida dos jovens portugueses que ele vai obrigar a morrer como tantos que já morreram ou ficaram mutilados ?.

Consta-nos que o governo de Portugal vai enviar para a nossa terra mais de dez mil, quinze mil ou mesmo vinte mil homens, segundo chegaram a dizer. Seja qual for o número governo português não fará mais que enviar homens para a morte.
A isso, o povo de Portugal deve opor-se, como deve exigir o regresso dos seus filhos que morrem por uma causa injusta enquanto na sua própria pátria faltam braços jovens para trabalhar a terra, para construir Portugal para como dizem os poetas, redescobrir a sua terra.
Nós sabemos, e eu falo como técnico que Portugal tem condições para oferecer uma vida digna a todos os seus filhos. Esta é que é a Pátria que os portugueses têm que defender e engrandecer com os seus esforços e sacrifícios e nela amanhã de certeza colaborarão connosco na Guiné e em Cabo-Verde para juntos darmos as mãos fraternalmente, baseados na história, baseados na amizade, baseados em tudo que nos une.

A propósito das últimas manifestações contra as guerras coloniais, decorridas em Portugal, devemos dizer que encaramos com muito apreço e que as seguimos com a maior atenção. Sempre dissemos ao nosso povo, aos nossos combatentes, que o povo português é um povo que já deu através da História uma transcendente contribuição para a evolução da humanidade. Queremos afirmar que a atitude dos estudante e do povo nas suas acções recentes quer na Igreja de S. Domingos, quer pela ocasião do enterro de António Sérgio, são para nós motivos de coragem, e mais do que tudo uma confirmação de que nada existe de contraditório entre o povo de Portugal e o nosso, de que não há nem nunca houve, nem haverá nenhum conflito a separar-nos e que sejam qual for os crimes dos colonialistas, os nossos povos irão dar as mãos para uma colaboração fraterna. Marcelo Caetano ao suceder a Salazar, podia e não quis acabar com as guerras coloniais.

Essa missão confiamos que a levará a cabo o povo português, através dos seus operários e camponeses, dos seus intelectuais progressistas ou anti-colonialistas de todos aqueles, em suma, que amam de facto Portugal, e que sabem que lutar contra a guerra colonial é salvar Portugal do sofrimento e da ruína, do perigo que essa guerra cria para a sua própria independência"

Amílcar Cabral

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