08 outubro 2011

UMA AULA NO LICEU DE SETÚBAL



Memórias de uma aula no Liceu de Setúbal.

Outubro de 1967


Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, com
saudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho. Somos o 7.º x e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º xx, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos.

Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política.
Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se por causa da política. A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardina na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:

- Vocês são o 7.º x, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear.

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a gente.
A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho.
Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.
Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia.
Depois veio o mais surpreendente:

- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada geral.

- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno.
Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo simpático.

- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria.
Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela frente um professor com tamanha ousadia.

- Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e cruel.

Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.

- Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria.
- Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade. Isso, vocês tem que fazer. Estudar.
Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país.

- Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei.
- Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural.

- Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma
falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas.

- Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros. Por isso, acho que não devem copiar.
Há que criar princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal. Não concordam?
Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.

Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras.
Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal? Já me esquecia de escrever. 
Esta ave rara, era o nosso professor de Organização Política, chama-se Zeca Afonso.

( o meu obrigado à autora deste texto )

14 setembro 2011

OSCAR LOPES, NA LITERATURA PORTUGUESA


Óscar Lopes nasceu a 2/X/1917, em Leça da Palmeira, Matosinhos.
Licenciou-se em Filologia Clássica pela FLUL, em 1941, e depois em Histórico-Filosóficas, pela FLUC. Foi professor liceal entre 1941 e 1974. Entre 1967 e 1971 foi bolseiro do Instituto de Estudos Pedagógicos da Fundação Calouste Gulbenkian. É autor duma vasta obra nos domínios da Linguística e, sobretudo, da História da literatura.
Foi colaborador regular das mais importantes revistas literárias portuguesas, incluindo algumas ligadas à oposição antisalazarista: Seara Nova, Vértice, Mundo Literário, além da Colóquio/Letras, da Camões e do suplemento literário do jornal O Comércio do Porto.
Com António José Saraiva elaborou uma das mais influentes obras da cultura oposicionista sob o Estado Novo, a famosa História da Literatura Portuguesa, editada em 1955 e com mais de 20 reedições posteriores.
A partir de 1942 envolve-se em intensa actividade política e cívica oposicionista, tendo pertencido ao MUNAF, ao PCP (desde 1945), ao MUD, ao MND e à CDE. Entre outros envolvimentos associativos, foi presidente da Associação Portuguesa de Escritores, fundador da Universidade Popular do Porto e dirigente da Associação de Jornalistas e Homens de Letras. A sua intervenção cívica e a militância no PCP foram represaliadas pela ditadura com a prisão por duas vezes, a proibição de saída do país durante um longo período e o afastamento da universidade. Só depois da revolução pôde ser professor na FLUP. Foi membro do Comité Central do PCP entre 1976 e 1996.

SUV - Soldados Unidos Vencerão (Set 1975)









11 setembro 2011

CHILE 11/SET/1973 - ASSASSINO GOLPE MILITAR DE PINOCHET




1ª Parte


2ª Parte


Allende é vitorioso nas eleições presidenciais em 1970 e a Unidade Popular assume o governo. Mas não o poder, pois o aparelho de Estado, a organização burocrático-militar é mantida, no fundamental, intacta. (1)
No governo da Unidade Popular intensifica-se o processo de mobilização popular e implementa-se significativa melhoria das condições de vida dos trabalhadores, a reforma agrária e a nacionalização de empresas estrangeiras, como as das minas de cobre, ferindo os interesses econômicos dos grandes grupos empresariais do Chile e do imperialismo. Estes desencadeiam sabotagens, boicotes, gerando desabastecimento de gêneros de primeira necessidade para a população, com intento de amedrontar, principalmente, as camadas médias e desestabilizar o governo de Allende.

Nas palavras do Embaixador dos Estados Unidos em Santiago, E. Korry, a Eduardo Frei, em carta de outubro de 1970: "Deve saber que não permitiremos que chegue ao Chile um parafuso, nem uma porca... Enquanto Allende permanecer no poder, faremos tudo ao nosso alcance para condenar o Chile e os chilenos às maiores privações e misérias..."

Ainda em outubro de 1970, o escritório central da CIA em Santiago fazia "... Informar a esses oficiais golpistas que o governo dos Estados Unidos lhes dará seu respaldo total no golpe ... (Cabo 762 do escritório central da CIA em Santiago. 14.10.1970).

Estava em preparação o golpe de Estado consumado em 11 de setembro de 1973, na operação sob o nome de “Chove Sobre Santiago”, executada pelas forças reacionárias do Chile, que teve como ponta de lança as Forças Armadas sob a direção do general Pinochet e que contou com o apoio direto da CIA, do governo dos EUA e também dos governos ditatoriais da América Latina, associados com o imperialismo norte-americano na "Operação Condor". O aparelho militar-policial do Estado chileno realizou um dos maiores banhos de sangue contra um povo nas últimas décadas na América Latina."

(1) - Voltaremos a esta questão

03 setembro 2011

COMBATE SEXUAL DA JUVENTUDE (Wilhelm Reich)



Do prefácio da edição alemã "Exórdio".

  "Este livro foi escrito para a juventude sem limite de idade. Não tem por fim a "explicação" habitual que afasta o problema das relações sexuais da juventude, mas quer, conforme as convicções de ordem científica, dar aos jovens repostas exactas, relacionadas com o grande problema da sua maturidade sexual."
  "São a situação social, o actual carácter da familia e da escola e a influência de toda a opinião pública, que determinam os rapazes e raparigas dos meios operários, os empregados e os camponeses, a apoderarem-se avidamente dos livros de informação sexual. 99% vão parar à obra nefasta de negociantes sem escrúpulos ou de médicos ignorantes de assuntos sexuais mas que se governam explorando a fundo a grande necessidade de esclarecimentos dos jovens de todos os meios. "

Wilhelm Reich, Janeiro de 1932


(capa do livro: das "Edições Delfos" colecção Livro Aberto - Novembro 1972)

16 junho 2011

EX-PRESOS POLÍTICOS


Por teu Livre Pensamento
Galiza, Rui Daniel
Este livro é o resultado de 25 entrevistas efectuadas a igual número de ex--presos políticos, por dois jovens sem qualquer memória pessoal do período em questão, que pela sua acção de luta contra o Estado Novo e em prol da implementação da Democracia em Portugal, viveram experiências de privação de liberdade e maus tratos nas prisões do fascismo.

Editora:  "ASSÍRIO & ALVIM"

SOLIDARIEDADE INSTITUCIONAL (na monarquia)

CARTA DO BISPO DO PORTO A SALAZAR - 1958

Ao Exm° Senhor Presidente do Conselho Lisboa


Porto, 13 de Julho de 1958

Excelência:
Cumpre-me, antes do mais, agradecer a V. Ex.a o ter manifestado a boa disposição de me ouvir.
Na verdade, estando eu, na ocasião das eleições, legitimamente ausente em Barcelona, a deslocação a Portugal, que se me pedia, por forma tão extraordinária e pública, não poderia deixar de considerar-se propaganda da Situação, visto que, nas condições das duas candidaturas, sem falar sequer na posição ideológica de quem mo pedia, era praticamente voto aberto. Isto tinha talvez menos importância; o que a tinha máxima era o carácter plebiscitário que se tem dado às nossas eleições, carácter que eu procurei fazer compreender ao grupo de pessoas que se me dirigiu e que depois V. Exa publicamente reconheceu.

Em tais condições e forçado a ser, diametralmente ao contrário do meu desejo, uma bandeira, eu não podia deixar de fazer uma declaração de voto. Como a não deveria fazer ao público requeri fazê-la a V. Exa.

Acho porém preferível enviar primeiro, por escrito, os pontos fundamentais dessa minha declaração, a fim de poder ser útil a nossa conferência.
Quero, sobretudo e antes de tudo, acentuar que aquilo que se põe à minha consciência é um problema directamente de Igreja.
A grande e trágica realidade, que já se conhecia mas que a campanha eleitoral revelou de forma irrefragável e escandalosa, é que a Igreja em Portugal está perdendo a confiança dos seus melhores. Não direi se este processo está em princípio, no meio ou perto do fim; o que é evidente é que tal processo está em curso, por mim penso que muito e muito adiantado. Apresentarei apenas dois factos, que, podendo servir de símbolos, são já de si realidades enormes. No Minho, coração católico de Portugal, onde se pensava que bastaria sempre o abade dar o alamiré e todos entravam imediatamente no coro, no Minho católico, mal os padres começavam a falar de eleições, os homens, sem se importarem com o sentido que seria dado ao ensino, retiravam-se afrontosamente da igreja.

Nas juventudes da Acção Católica, onde tanto se quis dizer que os padres andavam a lançar inquietações e dúvidas, os dirigentes mais responsáveis saltam fora dos quadros e da disciplina, para manifestarem a sua inconformidade e desespero, fugindo ao conhecimento dos assistentes (que, apesar de tudo, lhes aconselhariam paciência). São os dois pólos, o da tradição e o da recristianização: do que fica no meio facilmente se poderá julgar. Está-se perdendo a causa da Igreja na alma do povo, dos operários e da juventude; se esta se perde, que poderemos esperar da sorte da Nação?

Como meio único de salvação, querem que cerremos fileiras em volta do Estado Novo. E apontam-nos os dentes das feras, que se aguçam, e previnem-nos contra o masoquismo do martírio e lembram-nos os frades espanhóis que votaram pela república em lista aberta... tudo isto para que as ovelhas se congreguem em volta do pastor. Não me compete examinar nem discutir todos estes conselhos enquanto dirigidos aos cidadãos portugueses; mas cumpre-me examiná-los e julgá-los enquanto dirigidos aos fiéis da Santa Igreja, como tais e insistentemente como tais.

Temos obrigação de pedir e realmente pedimos a Deus que nos dê força e constância para afrontarmos a incompreensão e mesmo o martírio pela causa da Verdade e da Justiça. Mas poderemos traduzir esta imediatamente em termos de Estado Novo?!...
Ou, em atitude aparentemente contrária, abrigarmo-nos à sombra da pax augusta do Estado Novo, haja o que houver com a Verdade e com a Justiça?!...

Como terei de dizer que não identifico as duas causas, e como discordar em geral da situação é discordar de V. Exa, permita-me que apresente aqui umas recordações pessoais.
Há trinta anos estava eu em Roma, sob o esplendor do sol ascendente do fascismo, então quase sem manchas. Embora sob a maior revolta íntima, tínhamos de corar da nossa qualidade de portugueses. Isto todos o dizem, mas eu senti-o pessoalmente, por exemplo, quando apresentei uns escudos para cambiar num grande banco, e o empregado ordinário chama um superior e este folheia um dossier em que registavam notas falsas, notas retiradas, etc. e acaba por decidir: — não nos interessa a operação.
Num jornal humorístico, Portugal aparecia mendigando à porta da S.D.N. e obtinha esta resposta: aqui não se entra "a la portoghesa"!

Lembro bem a comoção e o entusiasmo, o sobressalto de esperança com que acompanhamos os inícios da carreira de V. Exa. Mais que para todos, era para nós, afastados da Pátria, uma espécie de resgate e reabilitação perante o estrangeiro desprezador. Devo conservar ainda algures um saco de papel em que religiosamente ia guardando cada palavra de V. Exa ou cada referência que lhe era feita. Além de tudo o mais que sentíamos como portugueses, acrescia que, sendo V. Exa para além da Sua competência profissional, apenas conhecido pelas suas actividades no campo católico, era uma espécie de oferta que a Igreja fazia à Pátria num momento crucial.
Pois não diminuiu a minha estima e respeito pela personalidade de V. Exa nem a minha admiração pela Sua inteligência.

E, no entanto...

Na tremenda crise nacional que a campanha das eleições pôs a nu, todos esperavam a palavra de V. Exa, uns para se guiarem, outros para julgarem do momento.
Ouvi e li, com o maior interesse, o discurso de V. Exa de 31 de Maio. Enquanto trata das políticas externa e ultramarina e do problema económico, salvas pequenas diferenças, não pude senão admirar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições.
Quando porém cheguei ao problema social, tudo começou a ser difícil. Involuntariamente encontrei-me a fazer um exercício lógico (o qual depois segui conscientemente) que consistia em procurar a exacta contraditória das posições expressas por V. Exa, a fim de ver onde me devia situar. Pois confesso francamente que, desprendendo-me de cromatismos de sentido e cambiantes de expressão, que o próprio tom peremptório e às vezes enfático de V. Exa convidava a desprezar, me vi quase sempre obrigado a aderir à formal contraditória das afirmações do Seu discurso. Posso errar, mas creio bem estar com a doutrina da Igreja (aqui não se trata de mera política, mas de filosofia política e de sociologia) ao discordar de doutrinas que, sendo de V. Exa, são da Situação.

Permita-me V. Exa que, por me parecer da maior utilidade, eu alinhe aqui algumas dessas oposições, o que farei, por brevidade, sem qualquer demonstração e com um mínimo de aclarações.
Aponta Vª Exa, entre as reivindicações de certa campanha, a "reclamação de ser reconhecido o direito de greve" e conclui terminantemente: "Aqui nos separamos." Depois confirmaria V. Exa que "agreve é entre nós um crime". Tenho realmente pena, porque eles estão com a doutrina da Igreja, e num ponto que, tendo já deixado de ter interesse de maior em vários países, na conjuntura político e conómico- social do nosso é infelizmente da maior relevância.

— "Nós não aceitamos a ideia da incompatibilidade de interesses entre o patronato e o operariado mas a da sua solidariedade permanente". Porém, se a oposição de interesses é, na base, a própria evidência, e se a solidariedade só se pode pedir no vértice, quer da empresa, quer da profissão, quer da economia geral, mas com a condição de as duas partes em presença terem iguais direitos e formas equivalentes de os realizarem!...

— Completa V. Exa: "Se uma incompatibilidade de momento põe as duas forças em risco de chocarem, é necessário que o defensor do interesse colectivo arbitre a contenda de acordo com a justiça e o bem comum. "Podia justificar a minha discordância aduzindo o princípio da complementaridade ou função supletiva do Estado, válido como em tantas outras e ainda mais, nestas matérias económico-sociais; podia lembrar aqueloutro princípio gravíssimo de filosofia social, de que "se cometeria uma injustiça, ao mesmo tempo que se perturbaria seriamente a ordem social, se fossem retiradas aos agrupamentos de ordem inferior as funções que esses agrupamentos estariam em condições de exercer eles próprios" (Pio XI). Baste porém considerar — em aplicação, aliás, desses princípios — a impossibilidade ou inoperância de tal arbitragem.

Perante um qualquer problema de salários, de distribuição dos frutos do trabalho, das condições deste, ou da sua produtividade, que terá a dizer em concreto a mera justiça legal? Se nascem conflitos do estado de enervamento dos operários, do espírito despótico ou mesquinho do patrão, do atraso sociológico duns e doutros, das crises de desenvolvimento duma indústria, como se fará ouvir a voz do bem comum? Quando os melhores teóricos da economia e da sociologia se confessam desorientados com certas evoluções do mundo do trabalho e da economia — não vemos nós hoje incorporadas nas instituições certas coisas que ontem nos pareciam subversivas?... — quando, mesmo em abstracto, questões se apresentam cuja solução só se pode esperar do livre jogo das forças sociais, que poderá dizer o defensor do interesse colectivo, um pobre delegado do Instituto N. do Trabalho a essas mesmas questões postas na complexidade do concreto?!

Tomemos, por mero exemplo, as greves de Abril em Espanha, que os jornais disseram provir duma exigência de redução de horas de trabalho (embora pareça que isto não é verdade). Logo se falou, parece que oficialmente, de comunismo. Mas não tinha o Papa, pouco antes, falado da perspectiva da diminuição do tempo de trabalho e das novas responsabilidades de aí emergentes para a Igreja e para a Sociedade?... Poderá o defensor do interesse colectivo dizer quando, como, em que actividades e por que caminho e progresso se vai operar esta evolução, sem dúvida justa e desejável? Mas, tanto sobre este como sobre os outros incontáveis problemas da que se chama precisamente questão social (que mesmo em Itália, depois de tantos esforços — lembrava Mons. Montini, ultimamente e sem receio de perturbar — não está resolvida nem ultrapassada), haverá que deixar de aplicar-se o princípio, que creio se ensina em todas as universidades, de que o direito vem sempre no fim?! Será aqui, e só aqui, que a vida haja de esperar pelo direito, para começar a viver?! Ou, para usar a conhecida expressão anedótica, deixará de ser verdade aqui que o direito (positivo, evidentemente) começa por não existir?!

— Mas V. Exa alarga ainda a perspectiva, põe frente a frente o liberalismo e o comunismo — parecendo excluir a possibilidade essencial dum terceiro — e, sob o ângulo do "interesse da colectividade", conclui que o comunismo, ao varrer das leis e da prática o livre jogo das forças sociais, "tem inteira razão". Vários regimes de autoridade — o fascismo, confessamente — se puseram em dialéctica com o comunismo, ou vieram a chegar evolutivamente a essa posição. Uma mentalidade comunista deve saudar tal facto, como realização precisa do seu programa e suas previsões — a síntese, provocada pela antítese.

Mas, na medida em que aqui se incluam as questões fundamentais, da liberdade e autoridade, da justiça e da ordem, da pessoa e da colectividade — e em boa verdade não vejo como afastar essas questões de perspectiva tão larga e de expressão tão categórica — nessa mesma medida tenho de pensar que o comunismo não tem razão nenhuma. E com a mesma lógica e pelos mesmos motivos penso que o comunismo pode coincidir com certas incidências concretas da sociologia cristã, que lhe é anterior, sem que por isso haja razão ou vantagem em falar de filocomunismo ou criptocomunismo para lançar a divisão entre cristãos. Parece que foi Durkheim quem disse que para muitos o comunismo era menos uma ciência do que um grito de dor. Por mim vejo todos os inconvenientes em transigir com a ciência; mas não vejo vantagem nenhuma em afogar o grito de dor.

— "Nós não podemos perder uma hora de trabalho, nós não podemos diminuir o ritmo do nosso esforço..."
Parece-me que, numa justa hermenêutica, estas palavras se devem tomar antes na sua tendência, que é de justificar a atitude que se vem defendendo, do que na sua materialidade de expressão. Como porém essa tendência vem já sendo objecto da minha discordância, permitame V. Exa que me cinja por um momento ao conteúdo material que se assinala.

Apesar do meu feitio sedentário, não tenho nos últimos anos recusado as oportunidades que se me oferecem de viajar pela Europa; e tenho-o feito ao rés da terra e da gente e com toda a possível atenção. Nem para isso seria necessário o conselho discreto de vários sociólogos, amigos de Portugal, que por delicadeza nem sequer me dizem as razões desse conselho. Não poderei dizer quanto me aflige o já hoje exclusivo privilégio português do mendigo, do pé-descalço, do maltrapilho, do farrapo; nem sequer o nosso triste apanágio das mais altas médias de subalimentados, de crianças enxovalhadas e exangues e de rostos pálidos (da fome e do vício?).

Mas, particularmente no ponto preciso do trabalho e do seu ritmo, tenho colhido a impressão espontânea, que pode ser ilusória mas não tem sido desmentida, de que em parte alguma, mesmo no Sul da Espanha ou da Itália, se nota como entre nós o ritmo lento do trabalho, um aspecto de desemprego lavrado, a pequena diferenciação ou quase confusão entre as horas de trabalho e o tempo de lazer — ou lazeira, como melhor se diria, com a voz do povo.

— "Nós não podemos admitir que o espírito de luta e o ódio se enxertem onde só a cooperação amiga pode triunfar".
É aqui que está toda a questão imediata. Se eu pudesse pensar que o espírito de luta e o ódio não estão a subir tremendamente e se não estivesse convencido que essa subida resulta de erros substanciais, podia decerto dormir tranquilo e continuar a vogar nas águas mansas e falazes duma paz exterior. Porém o que me parece trágico é que as tensões sociais e políticas estão a subir perigosamente e, à falta da nossa preparação e iniciativa ordeira, podem ser de um momento para o outro desencadeadas por loucos a benefício de criminosos.

— "Não esquecemos os egoísmos humanos, nem os abusos, nem mesmo a pobreza ou a miséria material ou moral que daí possam derivar; digo que há formas mais correctas e mais seguras de dominá-los, com benefício geral".
Devo confessar que as não conheço, essas formas. Tenho procurado debruçar-me sobre a doutrinação do Santo Padre, o grande e imparcial observador (além do mais), bem como sobre o ensino dos bispos do mundo, primeiros e últimos defensores da paz cívica entre o povo cristão, e não tenho conseguido divisar que as soluções se apontem no nosso sentido. Tenho prestado sempre a maior e benévola atenção às palavras de V. Exa e às dos mais responsáveis expoentes da Situação e, em filosofia política e sociológica, não tenho conseguido tranquilizar-me nem quanto à correcção nem quanto à segurança.

Todos estamos de acordo em que há dois problemas fundamentais, sem cuja solução não poderá haver paz social, sejam quais forem as aparências. O primeiro é que os frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social entre os membros da comunidade, quer no ponto de vista dos indivíduos quer no dos sectores sociais (e aqui podemos pensar especialmente na lavoura e na miséria do trabalhador do campo).
O segundo é que, seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou a uma classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua justa quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política.

Quando o exame se impõe, parece que as críticas negativas do primeiro ponto são unânimes, quer elas partam de oposicionistas ou de situacionistas.

Quanto ao segundo quase nem se fala, o que poderá talvez compreender-se por a negatividade do primeiro barrar o caminho ao segundo. E no entanto talvez a incompreensão para o segundo seja causa do que no primeiro é clamoroso e parece inexplicável e insolúvel. Porquanto, na melhor das hipóteses, encontramos entre nós apenas o paternalismo patronal. Ora é já hoje mais que evidente que o mundo operário e camponês não podem ser educados pelo patronato. Não podem nem querem; e temos de lhes reconhecer razão, por mais que desejemos e apreciemos o bom sentido social dos patrões, que por essa compreensão exactamente devia começar. E nem será necessário para isso lembrar como muitas vezes essa "educação" facilmente se transforma em "ensino" e depois em "ensinadela". Patrões muito "bons" e muito "católicos", com toda a naturalidade nos falam esta linguagem, a nós bispos, como se nós houvéssemos de aprovar autênticas declarações de guerra social. Se a não podemos aprovar do lado menos responsável, havemos de a aprovar do lado mais capaz, mais obrigado e mais responsável?!
Que o Estado venha educar ou "ensinar" os trabalhadores é também do maior melindre. Não seria preciso vivermos numa época de "suspeição ideológica" para que os operários desconfiassem do favor; na situação presente é quase fatal que o operariado veja, como vê, no Estado o aliado do patronato.

Mas será realmente o Estado uma sociedade "docente"? Parece que em todo o mundo não-totalitário essa noção errada desaparece, com grandes vantagens em todos os domínios, principalmente no do trabalho.

— "O pior é pensar-se que se pode realizar qualquer política social com qualquer política económica; que se pode erguer qualquer política económica com qualquer política financeira..."
Parece que nestas palavras se estabelece um nexo lógico entre os êxitos evidentes da política internacional e ultramarina e uma política social em discussão: que esta seria o preço da grandeza nacional. Embora me pareça discutível, em vários aspectos, tanto aquela ligação como o volume e a aplicação deste preço, não haverá necessidade de especial exame sob este ângulo.

Parece porém da maior vantagem considerar a hierarquia de valores sobre que se tem vivido e que nesta passagem se estabelece formalmente. Não há que discordar dela, sob o aspecto material; sob o aspecto formal porém creio achar-se aqui a causa principal das nossas dificuldades. E nem sequer irei para o raciocínio, que se poderia chamar metafísico, segundo o qual nunca o humano se poderá sacrificar ao material; e no entanto isto é não só verdadeiro, mas da melhor filosofia política e intimamente sentido pela consciência, embora turva, da multidão.
Mas consideremos apenas o concreto dos efeitos e da situação. O presidente Kubitschek de Oliveira confiou há pouco à imprensa que V. Exa numa conferência de duas horas tentou convencê-lo de que, como base da modernização do Brasil, devia estabelecer uma moeda sã. Acrescenta porém que resolveu não seguir esse conselho, porque se tal fizesse começariam o descontentamento, as inquietações e a revolução.

Nem sequer me passa pela mente fazer comparação entre as pessoas nem entre os métodos de trabalho. Mas quando vemos o estado de espírito revolucionário, entre nós, poderemos deixar de pensar nas razões — que podem não ser a razão — do Presidente do Brasil?

Posso errar e quase admito que deva errar, porque estou, neste ponto, fora da minha competência; mas não posso furtar-me a pensar que a fonte material dos males nacionais se pode encontrar na rigidez da escala de valores adoptada e mantida. Uma coisa, que era necessária e foi maravilhosa, até politicamente, no princípio, na era do resgate, pesou tremendamente na era que V. Exa chamou, se bem me recordo, do engrandecimento. Um financismo à outrance (operando aliás pela compressão dos preços, contra o aumento da circulação fiduciária), invertido num economismo despótico, actuando dentro duma socialidade cujos erros venho procurando apontar, não podia deixar de resultar e resultou efectivamente (com excepção do período inicial dos abonos de família) em benefício dos grandes contra os pequenos e finalmente na opressão dos pobres.
Não esqueço as grandes possibilidades de trabalho que o Estado e as grandes empresas criaram; mas isso porém não impediu que se estabelecesse e fechasse o que podemos chamar o ciclo da miséria.
Falando assim, eu não quero tomar partido pelos excessos do socialismo ou pelo descalabro financeiro; apenas não posso deixar de pensar que na acção política, como em tudo e mais que em tudo, a virtude está no meio e que, se o equilíbrio financeiro é óptimo, nunca deve deixar de estar ao serviço do homem, porque aliás corruptio optimi pessima. Não perco de vista as dificuldades, ansiedades e perigos que as más finanças oferecem por esse mundo; mas parece-me que, através de tudo, se procura salvar um princípio verdadeiro: que as finanças são o primeiro servidor e não podem ser, senão excepcional e transitoriamente, o senhor da Nação. (Como o dinheiro, para o homem indivíduo...).
Mas, reconhecendo que devo ser incompetente nesta matéria, peço para reter apenas a advertência — e só como advertência — de Kubitschek de Oliveira...

— "E não se receie pela formação de partidos".
Todos os oradores da União Nacional insistem no esquema político de 1926 e V. Exa empresta-lhes a Sua imensa autoridade, antevendo os vários partidos e mesmo o da "democracia cristã, visto haver quem julgue que em tais condições por esse caminho mais assegurada fica a defesa da Igreja". Podia dizer, sobre este último inciso, que o problema essencial não é directamente a defesa da Igreja, mas da ordem civil e social; e penso mesmo que a maior necessidade dos católicos é ultrapassar a mentalidade de Centro Católico, que cada vez mais se torna uma mentalidade de catacumba ou mesmo de gheto, da qual a Igreja já só pode esperar um "amor de perdição".

Mas falemos directamente das previsões políticas. E aqui mais uma vez insisto que me cabe naturalmente errar, e até por duas razões: primeiro porque estamos a predizer o futuro, que é ofício que Deus não gosta de confiar a outrem, como disse Peguy; segundo, porque, tratando-se de política concreta, estou fora da minha competência, visto que essa não é mister da Igreja, embora o seja dos católicos.

Não posso contudo furtar-me a pensar que o esquema mental que se adopta e segue é inteiramente inadequado. Trinta e dois anos não deviam ter passado e não passaram em vão. A nossa perspectiva é muito mais grave do que essa balbúrdia sempre ridícula e às vezes sanguinolenta. O que está diante de nós é a ameaça duma tremenda irrupção anarco-social-comunista; e todo o nosso problema é saber se as forças da civilização, hoje claramente forças do cristianismo, serão capazes de aguentar o embate.

Parece que tudo está a trabalhar, sobretudo da nossa parte, para preparar a derrota. V. Exa insiste em que a política não tem futuro, mas sim a necessidade de governar. Concordo, mas precisamente no sentido de que a política vai submeter-se à sociologia. E aqui estão bem desenhadas duas frentes, perante as quais todas as divisões pessoais, grupais e partidárias, com nomes e sem nomes, perdem a importância. Por outras palavras: se o comunismo vencesse não mais haveria partidos, e o comunismo só não vencerá se conseguirmos unir a frente cristã (com um ou vários nomes) numa verdadeira sociologia cristã. Nem sequer recuso a possibilidade de um dia as duas frentes se unirem (sem exclusão, é claro, das diferenças, quero dizer dos differenda, pessoais ou profissionais) e isto será a ordem corporativa da sociedade. Mas vejo isto tão longe da nossa "ordem" presente, que a verdadeira esperança corporativa parece estar apenas em que os países chamados democráticos ou socialistas, sem o dizerem nem talvez o saberem, avançam nesse caminho ou desenham essa tendência.

Quanto a nós, apesar das aparências e da urgência — "nos próximos seis meses"... — sinto ter de pensar que não estamos a caminhar, a não ser do avesso.

Por menos democrático ou por mais antipartidário que se seja, não pode esquecer-se legitimamente aquele consensus, aquela ideia constitutiva dum povo que é, para Cícero, o próprio sentimento ínsito na massa popular de estar unida iuris consensu et utilitatis communione, o que St.° Agostinho transferia para a mentalidade cristã na tradução: populus est coetus mnltitudinis, rerum quas diligit concordi ratione sociatus.

Poderá dizer-se que o povo português ama o corporativismo, como o vê e o sente, concordi ratione?...
Mas devo encerrar esta análise, para mim dolorosa por muitas razões e até por me revelar a mim próprio um desfasamento com o pensar de V. Exa que não tinha ainda apreendido como tão profundo.
Insisto em que tudo isto é para mim um problema de Igreja, um problema "profissional" de bispo. Reconheço sem dúvida que se torna um tremendo problema da Nação; mas só depois de problema de Igreja.

E isto sob qualquer ângulo que encare o assunto. Assim, por exemplo e ad abundantiam, é evidente que o problema total de hoje é o do colectivismo, isto é o da relação Pessoa-Estado. Ninguém quererá ignorar que nesta relação transcendente está profundamente empenhada a doutrina e a vida da Igreja. No caso português, neste caso único na nossa história, a extraordinária personalidade de V. Exa impunha um esforço igualmente extraordinário para que esse personalismo se não transformasse em estatismo.

Não sei se tal esforço existiu; todos sentem que não foi eficaz. Talvez em Portugal ninguém tenha chegado a expressar aquele conceito que se formulou no país vizinho de que o Estado é o exorcismo da Nação. (Mas acontece até, por vezes, que certas enormidades é melhor expressarem-se, para se efectuar a necessária catarse, e deixarem de ficar a dominar o subconsciente.) Acontece porém que, numa continuidade e potencialização da velha democracia, o Estado, que nem sempre estará bastante presente naquilo que é propriamente seu, está sumamente presente naquilo que só supletivamente é seu, como na educação e na assistência, para não falar na economia e na sociologia. E isto, enquanto relação transcendente personalismo-estatismo, é um problema de Igreja. A Igreja não pode pensar nem viver com isto.

Problema de Igreja é igualmente o corporativismo. A Igreja "comprometeu-se", não com o Estado corporativo, mas com a ordem corporativa da sociedade. E bem sabemos, entre nós, como do respectivo Ministério se quer "comprometer" a Igreja na sua doutrinação e acção. Ora o caso português, sob este aspecto, parece-me ser esquematicamente o seguinte: Em 26, o sindicalismo português caminhava precipitadamente para o bolchevismo. O próprio Bento Gonçalves regista que já o Poder se aliava às massas, por ele comandadas, contra a polícia e o exército. Por isso a Nação se levantou num legítimo e pacífico movimento de salvação pública. Havia porém que libertar o operariado da condução e do despotismo comunista (e isto em pleno direito "democrático" porque aquela condução era dolo duma parte e engano da outra), facultar-lhe a máxima promoção humana e permitir o progresso dum autêntico, são e autodirigido sindicalismo, em ordem à integração social progressiva e voluntária. Para isso muitas coisas eram precisas, mas sobretudo que a Administração assumisse as responsabilidades e mesmo o odioso que lhe competem e deixasse à organização profissional a autodeterminação que lhe é essencial e a simpatia benéfica que lhe era indispensável na infância. Em vez disso achou-se melhor, através da organização da economia e do trabalho, "estabelecer uma vida colectiva de que resulte poderio para o Estado..", e para isso, naturalmente, privar a organização profissional operária de qualquer meio efectivo "de conseguir novas condições de trabalho ou quaisquer outros benefícios". Evidentemente, porque benéfico só o Estado e a Administração; a organização profissional não podia ser mais que (temos de empregar a palavra) um acamo... Isto é a lei; nem sequer falemos da prática e ainda menos dos desvios, que se tornam lógicos.

Seria também longo analisarmos uma arquitectura legal e organizativa que, oscilando entre o geometrismo e o barroquismo, é sobretudo errada como projecto e lançamento: armação patronal dum lado, armação operária do outro; e ao meio sempre o Estado, como coxim único amortecedor de choques, que parecem considerar-se inevitáveis e insanáveis, a não ser por benefício do Estado e talvez até que este convença uns e outros da sua "solidariedade permanente"...

Temos de ser francos, talvez brutais: o corporativismo português, como outros já passados, foi realmente um meio de espoliar os operários do direito natural de associação, de que o liberalismo, em 91, os privara, e que tinham reconquistado penosa e sangrentamente. E a isto se chama corporativismo; e com isto se quer comprometer e, na verdade, se comprometeu, inútil mas terrivelmente, a Santa Igreja.
Isto é pois um problema de Igreja...
Podia continuar, e mostrar como tudo é ainda um problema de Igreja na alternativa que se quer impor — ou isto ou o comunismo (mas não há uma doutrina social cristã?) — na dialéctica entre economismo de base financista e humanismo, ao serviço daquele, na posição de certo nacionalismo, etc, etc.

Apontando porém ao fim deste longo e enfadonho mas necessário arrazoado, tenho ainda de frisar um novo aspecto deste problema de Igreja, aspecto universal e omnipresente, que a muitos infelizmente parecerá uma questão adiáfora e impertinente.
Disse V. Exª que com a liberdade nada se pode fazer e que a docilidade do povo português representa um grave perigo para a estabilidade política e social; dissera antes que de algum modo a essência do regime estava nos seus serviços e prestações sociais.

Eu não quereria abusar do sentido das palavras, mesmo postas por forma tão absoluta e categórica. Como porém nas primeiras se parece ao menos afastar a liberdade de formação da opinião pública — talvez isso esteja já no preceito constitucional de impedir a "perversão da opinião pública na sua função de força social", mas então tem de pôr-se em causa a Constituição — e a possibilidade de chamar o povo à consciência da sua idoneidade para a condução da coisa comum, e como nas segundas se parece reduzir a vida política à Administração, tendo em conta (e creio não ser injusto) que esta é toda ou quase toda a ideologia prática da Situação, não pode deixar de concluir-se que o homem não tem que pensar em realizar-se politicamente, que o cidadão português não precisa de ter dimensão política. Ora a Igreja não pode impor esta doutrina a ninguém, decerto nunca a seus filhos, a quem não deseja uma imminutio capitis.
Bem sei que está aí a União Nacional "aberta a toda a gente". Mas, sem pensar em quaisquer desvios ou na degenerescência em partido, temos de admitir o dilema: ou bem que a U.N. não tem qualquer doutrina e então temos exactamente aquilo que dizíamos, a negação da dimensão política; ou bem que tem uma doutrina e nesse caso, ou é dogmática e estamos no mesmo, ou é livre e caímos na sua negação, na desunião.

Ponhamos a questão em concreto e precisamente no ponto que mais proximamente interessa à Igreja. Parece que para se ser bom filiado da U.N. o menos que se pode pedir é que se seja nacionalista. Mas o nacionalismo, desde a mensagem pontifícia do Natal de 54, é no vocabulário católico um termo mais que suspeito. Poderá decerto juntar-se-lhe um adjectivo. Mas se se pretende que obriguemos ou animemos os católicos a serem nacionalistas, mesmo com adjectivo, que autoridade nos fica para os impedirmos de serem progressistas, com o adjectivo que escolherem?... Quereremos ou poderemos impor aos católicos conscientes, e sobretudo à juventude, que quer ser intelectualmente respeitada, o círculo nacional das supremas designações políticas, cujo vício apenas a personalidade de V. Exa pôde esbater?!

Afinal esta negação da livre e honesta actividade política é também uma política; apenas, má política. O problema enorme, histórico e decisivo é este: pode ou não pode o católico ter dimensão política? Deve ou não deve o católico ter dimensão política?

Este é o problema da Igreja portuguesa, hic et nunc o grande e como que único problema da Nação, mas por via de consequência: perdida a Igreja na alma do povo estará a Nação. Como bispo, sinto a tremenda responsabilidade de amanhã, no meio da eventual catástrofe — não cultivo "a visão catastrófica dos acontecimentos" mas não posso também aceitar a táctica da avestruz, que infelizmente vejo difundida de mais — os católicos nos poderem dizer que a culpa foi nossa, por os termos inibido da formação e acção políticas.

Em consequência e à luz de tudo quanto escrevi, condensarei aquilo que desejaria perguntar a V. Exa em quatro pontos:

1°- Tem o Estado qualquer objecção a que a Igreja ensine livremente e por todos os meios, principalmente através das organizações e serviços da Acção Católica e da Imprensa, a sua doutrina social?

2º- Tem o Estado qualquer objecção a que a Igreja autorize, aconselhe e estimule os católicos a que façam a sua formação cívico-política, de forma a tomarem plena consciência dos problemas da comunidade portuguesa, na concreta conjuntura presente, e estarem aptos a assumir as responsabilidades que lhes podem e devem caber, como cidadãos católicos?

3º- Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos definam, publiquem e propaguem o seu programa ou programas, politicamente situados, em concreto hic et nunc, o que evidentemente não pode ir sem o despertar de esperanças de mutações ousadas e substanciais e do seu clima emocional?

4º- Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos, se assim o entenderem e quando o entenderem, iniciem um mínimo de organização e acção políticas, a fim de estarem aptos, nas próximas eleições legislativas ou quando o julgarem oportuno, a concorrer ao sufrágio, com programa definido e com os candidatos que preferirem?

— Desejo precisar que, ao formular estas perguntas, não quero sugerir qualquer benevolência ou favor para com a actividade cívico-política dos católicos; antes, pelo contrário, penso que se não forem capazes de aguentar o desfavor e a animosidade do Poder, pouco podem merecer o respeito e a liberdade. Apenas sugiro e peço, mas isso com toda a nitidez e firmeza, o respeito, a liberdade e a não-discriminação devidos ao cidadão honesto em qualquer sociedade civil. Desejo ainda precisar que esta minha atitude e diligências, que me resolvi a desenvolver como servidor da Igreja, são no entanto da minha única e exclusiva responsabilidade.

Por isso e para isso, a fim de que o Episcopado português seja inteiramente livre de aceitar ou repudiar estes actos e quaisquer consequências, resolvi não ouvir qualquer dos Bispos responsáveis pelas nossas Dioceses, a quem apenas post factum comunicarei o caso. Nem sequer falei a S. Eminência o Sr. Cardeal Patriarca, pela mesma razão e por me parecer que a S. Eminência pertence a última palavra, que moralmente compromete a Igreja portuguesa, e normalmente não a primeira, que responde ao estado de consciência e às circunstâncias de cada um, na sua esfera de responsabilidade.

Finalmente e pela sua actualidade, permito-me juntar cópia de alguns documentos relativos aos Centros Paroquiais de Assistência e Formação Social que deixam ao menos ver como os erros aqui denunciados não ficam no domínio do abstracto.

Nestes termos e pedindo me releve a recta intenção em tudo quanto possa ter magoado V. Exa e reiterando a expressão da minha muita consideração pessoal, fico aguardando ordens de V.Exa e subscrevo-me

De V.Exa Venerando e muito obrigado

a) António, Bispo do Porto

04 junho 2011

"GLÁDIO" A GUERRA SECRETA EM PORTUGAL.

Os exércitos secretos da NATO

A guerra secreta em Portugal

por Daniele Ganser [*]

Este artigo faz sequência a:
O Gladio dispunha de uma base eficaz em Portugal, no tempo do Salazar. Embora só conheçamos indirectamente o seu funcionamento, através de estudos italianos, o historiador Daniele Ganser conseguiu identificar o seu papel em Portugal e nas suas colónias africanas. Graças a esse dispositivo, a NATO não se contentou em assassinar oponentes a Salazar, mas também líderes revolucionários africanos de primeiro plano, como Amílcar Cabral.
Em Maio de 1926, o general Gomes da Costa assumiu o poder em Portugal através de um golpe de estado, aboliu a Constituição e o Parlamento e instaurou a ditadura. Uns anos mais tarde, o ditador Salazar assumiu as rédeas do país. Durante a guerra civil espanhola, apoiou o general Franco a quem forneceu tropas e material. Os dois homens aliaram-se para garantir a Hitler e a Mussolini a neutralidade de toda a península ibérica, facilitando assim consideravelmente a sua tarefa na frente ocidental. Os quatro ditadores entraram em acordo quanto à necessidade de combater e de aniquilar o comunismo na União Soviética e nos seus países respectivos.
Mas, como a URSS saiu vitoriosa da segunda guerra mundial e Hitler e Mussolini foram derrotados, Salazar e Franco ficaram numa posição delicada em 1945. No entanto, como os Estados Unidos do Presidente Truman se envolveram numa guerra mundial contra o comunismo, os dois ditadores da península puderam beneficiar do apoio silencioso de Washington e de Londres. Apesar do apoio de Salazar ao golpe de Franco e da sua aliança com as potências do Eixo, Portugal foi autorizado a figurar, para surpresa de muita gente, entre o número dos membros fundadores da NATO em 1949. Seguiu-se um reinado praticamente sem oposição de quase 40 anos até que a morte de Salazar, em 1970, permitiu enfim que Portugal entrasse numa transição democrática e integrasse a União Europeia.
À imagem do que se pôde observar nas ditaduras de extrema direita da América Latina e sob o regime autoritário de Franco, o povo português era vigiado permanentemente por um aparelho de segurança que funcionava na sombra e fora de qualquer enquadramento legal definido pelo Parlamento. Os golpes sujos visando a oposição política e os comunistas multiplicaram-se durante o regime de Salazar. Essas operações eram efectuadas por diversos serviços e órgãos, entre os quais a tristemente célebre Polícia Internacional e de Defesa do Estado, ou PIDE, e os serviços secretos militares portugueses.
Como não foi feito nenhum estudo aprofundado sobre as organizações de extrema-direita e as operações especiais que decorreram durante a ditadura de Salazar, os laços com a rede anticomunista secreta da NATO não são muito claros. A existência em Portugal de exércitos secretos próximos da CIA e da NATO foi revelada pela primeira vez em 1990, no seguimento da descoberta do Gladio italiano. " Em Portugal, uma rádio lisboeta noticiou que tinham sido utilizadas células duma rede associada à Operação Gladio durante os anos cinquenta para apoiar a ditadura de extrema-direita do Dr. Salazar " pôde ler-se na imprensa internacional. [1] Cinco anos depois, o autor americano Michael Parenti escreveu, sem todavia revelar as suas fontes, que agentes do Gladio tinham " ajudado a consolidar o regime fascista em Portugal ". [2]
Mais precisamente, a imprensa local revelou em 1990 que o exército secreto de Portugal existia com o nome de código "Aginter Press". Com o título " O 'Gladio' funcionava em Portugal ", o semanário português O Jornal anunciou a uma população estupefacta que:   "A rede stay-behind, concebida no próprio seio da NATO e financiada pela CIA cuja existência acaba de ser revelada por Giulio Andreotti, dispunha de um ramo em Portugal, activo nos anos sessenta e setenta. Tinha o nome de 'Aginter Press'" e esteve sem dúvida implicada nos assassínios em território nacional assim como nas colónias portuguesas em África. [3]

A Aginter Press não tinha rigorosamente nada a ver com a imprensa. Essa agência não imprimia nem livros nem brochuras de propaganda anticomunista, mas treinava terroristas de extrema-direita e efectuava golpes sujos e operações clandestinas no interior e no exterior das fronteiras de Portugal. Essa organização, tão misteriosa como violenta, era sustentada pela CIA e comandada por quadros de extrema-direita europeus que, com a ajuda da PIDE, recrutavam militantes fascistas. O inquérito feito pelo Senado italiano sobre o Gladio e o terrorismo permitiu determinar que certos extremistas italianos tinham sido formados pela Aginter Press. Enquanto que em Portugal se ficava a saber que uma subdivisão da Aginter Press, baptizada de " Organização Armada contra o Comunismo Internacional " também tinha operado na Itália, os senadores italianos descobriram que a organização Aginter Press tinha recebido o apoio da CIA e que era dirigida pelo capitão Yves Guillon, mais conhecido pelo pseudónimo de Yves Guérain-Sérac, especialista das operações de guerra clandestina a quem os Estados Unidos tinham atribuído várias medalhas militares entre as quais a Estrela de Bronze Americana por se ter distinguido na guerra da Coreia. "Segundo indicam os resultados do inquérito criminal", concluía o relatório do inquérito italiano, "a Aginter Press era uma central de informações próxima da CIA e dos serviços secretos portugueses e especializada em operações de provocação". [4]
Enquanto o governo português hesitava em abrir um inquérito sobre a história sombria da Aginter Press e da guerra secreta, a Comissão senatorial italiana prosseguia as suas pesquisas e, em 1997, ouviu o juiz Guido Salvini. Um verdadeiro especialista em questões de terrorismo de extrema-direita, o magistrado tinha examinado com minúcia os documentos disponíveis sobre a Aginter Press. O senador Manca interrogou-o: " A CIA americana, segundo o senhor, é directamente responsável pela operações efectuadas pela Aginter Press?", a que o juiz respondeu: " Senador Manca, está a fazer uma pergunta muito importante " e pediu, dada a natureza delicada da resposta, para ser ouvido em privado. Foi autorizado e a partir daí todos os documentos foram classificados como confidenciais. [5]
Em público, o juiz Salvini explicou que era " difícil dar uma definição exacta do que é a Aginter Press ", mas mesmo assim tentou dar uma descrição: " É uma organização que, em muitos países, nomeadamente na Itália, inspira e apoia os planos de grupos cuidadosamente escolhidos que agem segundo protocolos definidos contra uma situação que decidiram combater ". O exército anticomunista secreto da CIA, Aginter Press, funciona, continuou ele, " em função dos seus objectivos e dos seus valores, que são essencialmente a defesa do Ocidente contra uma invasão provável e iminente da Europa pelas tropas da URSS e dos países comunistas ". [6] Sempre segundo o juiz italiano, o exército secreto português garantia, como a maior parte das outras redes da Europa do Ocidente, uma dupla função. A rede stay-behind treinava-se secretamente para uma eventual invasão soviética e, na expectativa dessa invasão, perseguia os movimentos políticos de esquerda, seguindo estratégias de guerra clandestina praticadas em vários países da Europa ocidental.
Embora uma boa parte dos seus membros já tivessem prestado serviços em diversos grupúsculos anticomunistas no decurso dos anos anteriores, a Aginter Press só foi oficialmente fundada em Lisboa em Setembro de 1966. Parece que os seus fundadores e a CIA foram guiados menos pelo receio duma invasão soviética do que pelas possibilidades de acção interna. Com efeito, esse período foi marcado pelas manifestações da esquerda que denunciava a guerra do Vietname e o apoio dado pelos Estados Unidos às ditaduras de extrema-direita na América Latina e na Europa, nomeadamente em Portugal. O ditador Salazar e a sua polícia, a PIDE, temiam especialmente as consequências desse movimento social susceptível de desestabilizar o regime e, portanto, apelaram à Aginter Press para que o submetesse.
A maior parte dos soldados de sombra que foram recrutados pela CIA para engrossar as fileiras deste exército secreto já tinham combatido em África e na Ásia do sudeste onde tinham tentado em vão impedir o acesso à independência das antigas colónias europeias. O director da Aginter Press, o próprio capitão Yves Guérain-Sérac, católico fervoroso e ardente anticomunista recrutado pela CIA, era um antigo oficial do exército francês que tinha assistido à derrota da França frente ao Reich durante a segunda guerra mundial. Também tinha combatido na guerra da Indochina (1946-1954), na guerra da Coreia (1950-1953) e na guerra da Argélia (1954-1962). Tinha prestado serviço na famosa 11ª Semi-Brigada Pára-quedista de Choque, a unidade encarregada de golpes sujos sob as ordens do SDECE, o serviço francês de informações externas, também ele próximo da rede stay-behind Rosa dos Ventos. Em 1961, Guérain-Sérac tinha fundado, juntamente com outros oficiais aguerridos do 11º Choque, a Organização do Exército Secreto, ou OAS, que lutou por uma Argélia francesa e tentou derrubar o governo do general de Gaulle para instaurar um regime autoritário anticomunista.

Depois de a Argélia ter acedido à independência em 1962, e de o general de Gaulle ter dissolvido a OAS, os antigos oficiais do exército secreto, entre os quais Guérain-Sérac, correram grande perigo. Fugiram da Argélia e ofereceram aos ditadores da América Latina e da Europa a sua valiosa experiência da guerra secreta, das operações clandestinas, do terrorismo e do contra-terrorismo, em troca do direito de asilo. [7] Esta diáspora da OAS veio reforçar as organizações de activistas de extrema-direita em numerosos países. Em Junho de 1962, Franco apelou aos talentos de Yves Guérain-Sérac, a fim de ele se juntar ao combate do exército secreto espanhol contra a oposição. De Espanha, Guérain-Sérac passou a seguir para Portugal, que aos olhos dele era o último império colonial e, sobretudo, o último bastião contra o comunismo e o ateísmo. Como um perfeito soldado da guerra-fria, ofereceu os seus serviços a Salazar: " Os outros depuseram as armas, mas eu não. Depois da AOS, fugi para Portugal para continuar o combate e travá-lo à sua verdadeira escala – ou seja, à escala planetária ". [8] Em Portugal, Guérain-Sérac associou-se a extremistas franceses e a renegados da OAS. O antigo pétainista Jacques Ploncard d'Assac apresentou-o nos meios fascistas e aos membros da PIDE. Dada a sua grande experiência, Guérain-Sérac foi recrutado como instrutor no seio da Legião Portuguesa e das unidades de contra-guerrilha do exército português. Foi neste contexto que ele criou, com a ajuda da PIDE e da CIA, a Aginter Press, um exército anticomunista ultra-secreto. A organização constituiu os seus próprios campos de treino nos quais mercenários e terroristas seguiam um programa de três semanas de formação em operações secretas que incluíam nomeadamente as técnicas de atentados à bomba, assassínios silenciosos, métodos de subversão, comunicações clandestinas, infiltração e guerra colonial.
Ao lado de Guérain-Sérac, o terrorista de extrema-direita Stefano Delle Chiaie participou também na fundação da Aginter Press. " Agíamos contra os comunistas, contra a burguesia estabelecida e contra a democracia que nos tinha privado da nossa liberdade. Fomos portanto forçados a recorrer à violência ", explicou mais tarde Delle Chiaie. " Consideravam-nos como criminosos mas na realidade éramos as vítimas de um movimento liberal antifascista. Queríamos espalhar as nossas ideias, queríamos ser ouvidos pelo mundo inteiro ". Por alturas de meados dos anos sessenta, Delle Chiaie, que na altura tinha 30 anos, fundou com Guérain-Sérac, e com o apoio da CIA, o exército secreto Aginter. " Com um dos meus amigos francês [Guérain-Sérac], decidi então [em 1965] fundar a agência de imprensa Aginter Press a fim de termos os meios de defender as nossas opiniões políticas ". [9] No decurso dos anos que se seguiram, Delle Chiaie tornou-se talvez no combatente mais sanguinário da guerra secreta. Em Itália, tomou parte em golpes de estado e em atentados, entre os quais o da Piazza Fontana em 1969 e, com o nazi Klaus Barbie, chamado o " Carniceiro de Lyon ", contribuiu para consolidar o poder de ditadores sul-americanos. [10]
" Os nossos efectivos são formados por dois tipos de homens: (1) oficiais que se juntaram a nós depois de terem combatido na Indochina e na Argélia e alguns que se alistaram depois da batalha da Coreia ", explicou o director da Aginter, Guérain-Sérac em pessoa, "(2) intelectuais que, durante esse mesmo período, se interessaram pelo estudo das técnicas de subversão marxista ". Esses intelectuais, como fez questão de observar, formaram grupos de estudo e partilhavam as suas experiências " para tentar dissecar as técnicas de subversão marxista e lançar as bases duma contra-técnica ". A batalha, não tinha qualquer dúvida quanto a isso, devia ser travada em numerosos países: " No decurso desse período, estabelecemos contactos sistemáticos com grupos de ideias próximas das nossas que surgiram na Itália, na Bélgica, na Alemanha, em Espanha e em Portugal, na óptica de constituir um núcleo duma verdadeira Liga Ocidental de Luta contra o Marxismo ". [11]
Saídos directamente de teatros de operações, muitos dos combatentes de sombra, e sobretudo os seus instrutores, entre os quais Guérain-Sérac, tinham pouca simpatia ou conhecimento pelos métodos de resolução pacífica de conflitos. O próprio director da Aginter estava convencido, como muitos outros, que a luta contra o comunismo na Europa ocidental implicava obrigatoriamente o recurso ao terrorismo: " Na primeira fase da nossa actividade política, devemos instaurar o caos em todas as estruturas do regime ", declarou sem esclarecer a que país se referia. " Há duas formas de terrorismo que permitem obter esse resultado: o terrorismo cego (através de atentados visando um grande número de civis) e o terrorismo selectivo (através da eliminação de personalidades marcadas) ". Tanto num caso como noutro, o atentado secretamente perpetrado pela extrema-direita devia ser imputado à esquerda, conforme sublinhou o paladino e ideólogo do terrorismo anticomunista: " Esses ataques contra o Estado devem, tanto quanto possível, passar por 'actividades comunistas' ". Os atentados terroristas dos exércitos secretos eram concebidos como um meio de desacreditar o regime em vigor e de obrigá-lo a pender para a direita: " A seguir, devemos intervir no coração do aparelho militar, do poder judicial e da Igreja, a fim de influenciar a opinião pública, de propor uma solução e de demonstrar claramente a fraqueza do arsenal jurídico actual (…) A opinião pública deve ser polarizada de maneira tal que nós apareçamos como o único instrumento capaz de salvar a nação. Parece óbvio que teremos necessidade de meios financeiros consideráveis para levar a bom termo essas operações ". [12]

Humberto Delgado, o "general sem medo", apresenta-se nas eleições presidenciais portuguesas de 1958. É derrotado graças a uma gigantesca fraude eleitoral e tem de se exilar. É assassinado em 1965 por um comando da PIDE preparado pelo Gládio, sob o comando de Rosa Casaco.
A CIA e a PIDE, os serviços secretos militares de Salazar, encarregaram-se de fornecer os fundos necessários para o empreendimento terrorista do capitão Guérain-Sérac. É num documento interno da Aginter, intitulado " A Nossa Actividade Política ", datado de Novembro de 1969 e que foi descoberto em 1974, que ele descreve como um país pode ser alvo duma guerra secreta: " A nossa convicção é que a primeira fase da actividade política deve consistir em criar as condições favoráveis à instauração do caos em todas as estruturas do regime ". Elemento essencial desta estratégia, as violências perpetradas deviam ser atiradas para cima dos comunistas e, bem entendido, todos os indícios deviam levar a essa conclusão. " Pensamos que é necessário, num primeiro tempo, destruir a própria estrutura do Estado democrático a coberto de actividades comunistas ou pró-chinesas ". O documento insistia seguidamente na necessidade de infiltrar os grupos de militantes de esquerda a fim de melhor os manipular: " Além disso, dispomos de homens infiltrados nesses grupos e que nos permitirão agir sobre a própria ideologia do meio – através de acções de propaganda e outras, realizadas de tal maneira que parecerão ser obra dos nossos adversários comunistas ". Essas operações realizadas sob falsa bandeira, concluía esse plano de acção, " criarão um sentimento de hostilidade para com os que ameaçam a paz de cada um dos nossos países ", ou seja, os comunistas. [13]
No decurso da primeira fase do seu plano, os oficiais, mercenários e terroristas da Aginter Press dedicaram-se a enfraquecer e aniquilar as facções de guerrilheiros que lutavam pela independência das colónias portuguesas. Por volta de meados dos anos sessenta, o primeiro teatro de operações da organização não foi pois a Europa, mas a África onde o exército português enfrentava os movimentos independentistas. A Aginter colocou os seus responsáveis de operações nos países limítrofes da África portuguesa. " Os seus objectivos englobavam a eliminação dos líderes dos movimentos de libertação, a infiltração, o estabelecimento de redes de informadores e de agentes provocadores e a utilização de falsos movimentos de libertação ". [14] Essas guerras secretas eram travadas em coordenação com a PIDE e outros serviços do governo português. " A Aginter correspondia-se por escrito com a PIDE no quadro das suas operações especiais e das suas missões de espionagem ". [15]

Entre as personalidades mais importantes, que foram vítimas dos assassínios orquestrados pela Aginter em Portugal e nas colónias, figuram sem dúvida Humberto Delgado, líder da oposição portuguesa, Amílcar Cabral, uma das figuras emblemáticas da revolução africana, e Eduardo Mondlane, líder e presidente do partido de libertação de Moçambique, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que foi morto em Fevereiro de 1969. [16] Apesar da violência dos métodos utilizados, Portugal não conseguiu impedir que as suas colónias acedessem à independência. Goa foi absorvida pela Índia em 1961. A Guiné-Bissau tornou-se independente, Angola e Moçambique em 1975, enquanto, nesse mesmo ano, Timor Leste foi invadido pela Indonésia.

Paralelamente a essas guerras coloniais, a Aginter Press desempenhou também um papel importante nas guerras secretas travadas contra os comunistas da Europa ocidental. Os documentos disponíveis sobre os exércitos stay-behind da NATO e a guerra clandestina parecem indicar que a organização lisboeta foi responsável por mais violências e assassínios do que qualquer outro exército secreto do velho continente. Os seus soldados de sombra agiam com uma mentalidade aparte. Contrariamente aos seus homólogos do P26 suíço ou do ROC norueguês, participavam em verdadeiras guerras abertas nas colónias e matavam em cadeia, sob o comando de um capitão que, seguro duma experiência adquirida na Indochina, na Coreia e na Argélia, não concebia outro meio de acção que não fosse a violência.

A operação realizada pelos combatentes de sombra em nome da luta contra o comunismo sobre a qual estamos mais bem informados é provavelmente o atentado da Piazza Fontana que atingiu as capitais políticas e industriais da Itália, Roma e Milão, pouco antes do Natal, a 12 de Dezembro de 1969. Nesse dia, quatro bombas explodiram nas duas cidades, matando às cegas 16 civis, na sua maioria camponeses que se dirigiam ao Banca Nazionale Dell'Agricultura de Milan para depositar as suas modestas receitas de um dia de mercado. Ficaram feridas ou mutiladas mais oitenta pessoas. Uma das bombas colocadas na Piazza Fontana não explodiu por causa do mau funcionamento do temporizador, mas quando os agentes do SID e a polícia chegaram ao local, apressaram-se a destruir os indícios comprometedores, fazendo explodir a bomba. A execução desse atentado obedecia estritamente às estratégias de guerra secreta definidas por Guérain-Sérac. Os serviços secretos italianos atribuíram esse acto à extrema-esquerda, chegando ao ponto de colocar os componentes de um engenho explosivo na casa do editor Giangiacomo Feltrinelli, conhecido pelas suas ideias de esquerda e aproveitaram para prender numerosos comunistas. [17]

Um relatório interno do SID, classificado como confidencial, e datado de 16 de Dezembro de 1969, suspeitava já que os atentados de Roma e Milão podiam ter sido feitos pela extrema-direita com o apoio da CIA. [18] No entanto, a opinião pública italiana foi alimentada pela ideia de que os comunistas italianos, na altura muito influentes, tinham decidido recorrer à violência para conquistar o poder. Na realidade, a paternidade desses actos recaía muito obviamente nas organizações fascistas Ordine Nuovo e Avanguardia Nazionale que agiam em estreita colaboração com os exércitos stay-behind. O militante de extrema-direita, Guido Giannettini, que foi directamente implicado nos atentados, era colaborador próximo da organização portuguesa Aginter Press. " O inquérito confirmou que existiam mesmo entre a Aginter Press, a Ordine Nuovo e a Avanguardia Nazionale ", anunciou o juiz Salvini aos membros da comissão de inquérito senatorial. " Ressalta claramente que Guido Giannettini estava em contacto com Guérain-Sérac em Portugal desde 1964. Ficou estabelecido que instrutores da Aginter Press (…) se deslocaram a Roma entre 1967 e 1968 e treinaram membros da Avanguardia Nazionale no manejamento de explosivos". O juiz Salvini concluiu, com base nos documentos disponíveis e nos testemunhos recolhidos, que a Aginter Press, uma fachada da CIA, tinha desempenhado um papel decisivo nas operações de guerra clandestina realizadas na Europa ocidental e tinha executado uma série de atentados sangrentos a fim de desacreditar os comunistas italianos. [19]

Estes factos foram confirmados em Março de 2001 pelo general Giandelio Maletti, antigo patrono da contra-espionagem italiana, que testemunhou no quadro do processo de militantes de extrema-direita, acusados de ter provocado a morte de 16 pessoas nos atentados da Piazza Fontana. Perante o tribunal de Milão, Maletti declarou que: " A CIA, seguindo as directrizes do seu governo, queria fazer nascer um nacionalismo italiano capaz de combater o pendor para a esquerda do país e, nesta óptica, não é impossível que se tenha socorrido de terroristas de extrema-direita ". Este depoimento crucial comparava a CIA a uma organização terrorista. " Não se esqueçam que era Nixon que se encontrava na altura à frente do país ", lembrou o general, " e Nixon não era um homem vulgar, um político muito apurado, mas um homem de métodos pouco ortodoxos ". [20] O juiz italiano Guido Salvini confirmou que todas as pistas levavam a "um serviço de informações estrangeiro". " Quando diz 'serviço de informações estrangeiro' está a referir-se à CIA ?", insistiram os jornalistas italianos, ao que Salvini respondeu prudentemente: " Estamos em condições de afirmar que sabemos pertinentemente quem participou na preparação dos atentados e quem estava sentado à mesa quando foram dadas as ordens. Isso é incontestável ". [21]
Não contente por lutar contra o comunismo na Itália, o capitão Guérain-Sérac estava firmemente disposto a travar o combate à escala mundial. Com esse objectivo, agentes da Aginter, entre os quais o americano Jay Sablonsky, participaram ao lado da CIA e dos Boinas Verdes na tristemente célebre contra-guerrilha da Guatemala que fez, entre 1968 e 1971, cerca de 50 mil mortos, na sua maioria civis. Os homens da Aginter estiveram também presentes no Chile em 1973 onde participaram no golpe de estado em que a CIA substituiu o presidente socialista democraticamente eleito, Salvador Allende, pelo ditador Augusto Pinochet. [22] A partir do refúgio que era a ditadura de extrema-direita de Salazar, a Aginter Press podia assim enviar os seus soldados de sombra para combaterem em muitos países do mundo inteiro.

Esta situação perdurou até à " Revolução dos cravos " de Maio de 1974 que pôs termo à ditadura e abriu caminho ao restabelecimento da democracia em Portugal. Os combatentes de sombra sabiam que a sobrevivência da sua organização estava estreitamente ligada à do regime totalitário. Quando souberam que oficiais de esquerda do exército português preparavam um golpe que iria iniciar a Revolução dos cravos, os agentes da Aginter conspiraram com o general Spínola a fim de eliminar os centristas portugueses. Previam invadir o arquipélago dos Açores a fim de o tornarem num território independente e de o utilizarem como uma base de retaguarda para lançamento das suas operações no continente.

Como este projecto falhou, a Aginter foi varrida ao mesmo tempo que a ditadura quando no dia 1 de Maio os oficiais de esquerda assumiram o poder, pondo assim fim a cerca de 50 anos de totalitarismo. Três semanas depois, a 22 de Maio, por ordem dos novos dirigentes do país, unidades especiais da polícia portuguesa investiram no quartel-general da Aginter Press da Rua das Praças em Lisboa a fim de fechar a sinistra agência e de apreender todo o material. Mas, quando chegaram ao local, já estava tudo vazio. Graças aos seus contactos no seio dos serviços de informações, os agentes da organização tinham sido prevenidos a tempo e desapareceram, sem que nenhum deles fosse preso. Porém, na sua precipitação, esqueceram alguns documentos. As forças policiais acabaram por recolher grande número de provas que documentavam a responsabilidade da filial da CIA, a Aginter Press, em numerosos actos de terrorismo.
Como a jovem democracia tentava acabar com o antigo aparelho de segurança herdado da ditadura, a PIDE, os serviços secretos militares e a Legião Portuguesa foram dissolvidos. A " Comissão de Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa " em breve descobriu que a PIDE, com a conivência da CIA, tinha dirigido um exército secreto baptizado de Aginter Press; exigiu consultar os dossiers reunidos sobre a Agência na sequência da busca aos locais e que continham todas as provas necessárias. Pela primeira vez, a história do exército secreto português ia ser objecto de um inquérito. Mas, subitamente, todos os dossiers se volatilizaram. " O dossier 'Aginter Press' foi subtraído à Comissão de Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa e desapareceu definitivamente ", lamentava o diário português O Jornal uns anos mais tarde num artigo consagrado à rede Gladio. [23]
Como é que isso pôde acontecer? Porque é que a comissão foi tão negligente perante informações tão essenciais? O italiano Barbachetto que trabalha para a revista política milanesa L'Europeo escreveu a este propósito: " Estavam presentes três dos meus colegas quando foram apreendidos os arquivos da Aginter. Só puderam fotografar alguns fragmentos da quantidade considerável de dados recolhidos naquele dia ". Sob os títulos de " Máfia " ou " Contribuidores financeiros alemães ", os documentos revelavam os nomes de código dos parceiros da Aginter. " Os documentos foram destruídos pelo exército português ", indicava Barbachetto, "que procurou evidentemente evitar incidentes diplomáticos com os governos italiano, francês e alemão, incidentes que não teriam deixado de surgir se as actividades da Aginter nesses países tivessem sido desvendados ". [24]
A PIDE foi substituída por outro serviço de informações português, o SDCI, que pesquisou a Aginter e chegou à conclusão de que a sinistra organização tivera quatro missões. Primeiro que tudo, tinha servido como " gabinete de espionagem dirigido pela polícia portuguesa e, através dela, pela CIA, pelo BND da Alemanha ocidental ou "Organização Gehlen", pela Direccion General de Seguridad espanhola, pelo BOSS sul-africano e, mas tarde, pelo KYP grego. Paralelamente a esta função de recolha de informações, a Aginter Press tinha igualmente servido de gabinete de " centro de recrutamento e de treino de mercenários e de terroristas especializados em sabotagens e assassínios ". Segundo o relatório do SDCI, a Agência também tinha sido um "centro estratégico para operações de doutrinamento de extrema-direita e neo-fascista na África subsaariana, na América do Sul e na Europa, realizadas em colaboração com regimes fascistas ou assimilados, figuras bem conhecidas da extrema-direita e grupos neo-fascistas activos a nível internacional". Finalmente, a Aginter era a capa dum exército secreto anticomunista, uma " organização fascista internacional baptizada "Ordem e Tradição" com o seu braço militar, a OACI, 'Organização Armada contra o Comunismo Internacional ". [25]
Depois da queda da ditadura, Guérain-Sérac e os seus activistas anticomunistas fugiram de Portugal para a Espanha onde, sob a protecção de Franco, instalaram o seu novo quartel-general em Madrid. Em troca do asilo político, os combatentes da Aginter, fiéis ao seu compromisso, puseram-se à disposição dos serviços secretos espanhóis para procurar e eliminar os dirigentes do movimento separatista basco ETA. Prosseguiram com as suas operações clandestinas no estrangeiro e trataram especialmente de desacreditar a Frente de Libertação Nacional argelina. " Posso citar-vos outro exemplo particularmente interessante ", declarou o juiz Salvini aos senadores italianos e revelou-lhes como, em 1975, a partir da sua base espanhola, os homens de Guérain-Sérac assistidos pelo americano Salby e por extremistas franceses, italianos e espanhóis, tinham organizado uma série de atentados que assinavam SOA, a fim de comprometer os Soldados da Oposição Argelina.
" As bombas foram colocadas nas embaixadas argelinas em França, na Alemanha, na Itália e na Grã-Bretanha " e deterioraram a imagem da oposição argelina quando na realidade " os atentados eram obra do grupo de Guérain-Sérac, o que dá uma ideia das suas capacidades de dissimulação e de infiltração ". A bomba colocada diante da embaixada argelina em Francfort não explodiu e foi cuidadosamente examinada pela polícia alemã. " Para compreender os laços que ligavam Guérain-Sérac à Aginter Press, basta observar a complexidade do engenho explosivo ", sublinhou o juiz Salvini. " Continha C4, um explosivo utilizado exclusivamente no exército americano de que não se encontra rasto em nenhum atentado efectuado por anarquistas. Repito, era uma bomba muito sofisticada. Ora a Aginter possuía C4, podemos pois facilmente deduzir os apoios de que beneficiava ". [26]
Quando o regime ditatorial se desmoronou com a morte de Franco, a 20 de Novembro de 1975, Guérain-Sérac e o seu exército secreto foram mais uma vez obrigados a fugir. A polícia espanhola levou tempo a investigar os vestígios que a Aginter deixou para trás e foi apenas em Fevereiro de 1977 que fez uma busca ao número 39 da rua Pelayo, o quartel-general da organização e descobriu um verdadeiro arsenal composto por espingardas e explosivos. Mas Delle Chiaie, Guérain-Sérac e os seus soldados já tinham fugido há muito de Espanha para a América Latina onde muitos deles escolheram o Chile como nova base para as suas operações. Guérain-Sérac foi visto pela última vez em Espanha em 1997. [27]
O exército secreto anticomunista português tornou a fazer-se notado em 1990, quando o primeiro-ministro Giulio Andreotti revelou que existiam em Itália e noutros países exércitos stay-behind montados pela NATO. A 17 de Novembro de 1990, a vaga atingiu Lisboa onde o diário Expresso noticiou com o título " Gladio. Os Soldados da guerra fria " que " o escândalo atravessou as fronteiras da Itália visto que a existência de redes secretas Gladio foi confirmada oficialmente na Bélgica, em França, nos Países-Baixos, no Luxemburgo, na Alemanha e semi-oficialmente na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, na Áustria, na Suíça, na Grécia, na Turquia, em Espanha, no Reino Unido e em Portugal ". [28]

Muito preocupado, o ministro português da Defesa, Fernando Nogueira, declarou publicamente a 16 de Novembro de 1990 que não tinha conhecimento da existência dum ramo da rede stay-behind em Portugal e afirmou que nem o seu ministério nem o Estado-maior das forças armadas portuguesas dispunham " de informações, quaisquer que fossem, relativas à existência ou à actividade duma 'estrutura Gladio' em Portugal ". [29] O jornal português Diário de Notícias lamentou que: " as declarações lacónicas de Fernando Nogueira sejam corroboradas, duma maneira ou de outra, por antigos ministros da Defesa, como Eurico de Melo e Rui Machete, assim como por o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros] Franco Nogueira e pelo marechal Costa Gomes, que nos confirmaram não saberem absolutamente nada sobre essa questão. A mesma posição foi adoptada por parlamentares da oposição, membros da Comissão parlamentar da Defesa ". [30]
Costa Gomes, que fora oficial de ligação junto da NATO, insistiu que nunca tivera conhecimento duma rede clandestina embora tenha " assistido entre 1953 e 1959 a todas as reuniões da Aliança ". Ao mesmo tempo reconheceu que não era impossível que tenha existido um Gladio português, com o apoio da PIDE e de certas pessoas estranhas ao governo. " Essas ligações ", explicou Costa Gomes, " se é que existiram de facto, não poderiam ter funcionado a não ser paralelamente às estruturas oficiais " e portanto ser-lhe-iam totalmente desconhecidas. Do mesmo modo, Franco Nogueira, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo de Salazar, declarou: " Nunca suspeitei da existência dessa organização. Nem quando estive nos Negócios Estrangeiros e me dava amiúde com responsáveis da NATO nem mais tarde ". Afirmou que, se a Gladio tivesse operado em Portugal, " essa actividade certamente seria do conhecimento do Dr. Salazar ". Como Nogueira deu a entender, Salazar teria certamente comunicado essa informação ao chefe da diplomacia: " Tenho muita dificuldade em acreditar que essa rede tenha tido ligações com a PIDE ou com a Legião Portuguesa. É por isso que estou convencido de que a Gladio nunca existiu no nosso país embora, claro, na vida nada seja impossível ". [31]
Enquanto os representantes do governo se recusavam a divulgar quaisquer informações sobre a guerra secreta, a imprensa portuguesa não podia senão constatar a evidência e deplorar que " visivelmente, vários governos europeus [tinham] perdido do controlo dos seus serviços secretos ", denunciando ao mesmo tempo, a " doutrina de confiança limitada " adoptada pela NATO. " Uma doutrina destas implica que alguns governos não teriam feito o que deviam para combater o comunismo e que portanto não era necessário mantê-los informados sobre as actividades do exército secreto da NATO ". [32] Apenas um alto graduado do exército português consentiu revelar alguns pormenores do segredo, a coberto do anonimato. Um general, que tinha sido chefe do Estado-maior português, confirmou a um jornalista de O Jornal que " havia existido de facto em Portugal e nas colónias um serviço de informações paralelo, cujo financiamento e controlo não pertenciam ao domínio das forças armadas, mas dependia do Ministério da Defesa, do Ministério do Interior e do Ministério do Utramar. Além do mais, esse serviço paralelo estava directamente ligado à PIDE e à Legião Portuguesa ". [33] Não houve nenhuma investigação oficial sobre este assunto, quando muito um simples relatório parlamentar. Por conseguinte, mantém-se o mistério aflorado por estas vagas confirmações.


Da casa inaugurada em 1969, por Americanos, que me parece ter sido Quartel General em Portugal, dadas a mais variadas coincidências: por exemplo, a casa dispunha na altura de uma poderosa antena de comunicações. Além disso, olhando com atenção a imagem semelhante a uma aguia ou mocho, o trângulo aponta para Nordeste. Entre outras coisas !!!

Notas
[1] John Palmer, "Undercover NATO Group 'may have had terror links' " no diário britânico The Guardian de 10 Novembro 1990.
[2] Michael Parenti, Against Empire (City Light Books, San Francisco, 1995), p.143.
[3] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no diário português  O Jornal de 16 Novembro 1990.
[4] Senato della Repubblica. Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabiliy delle stragi : Il terrorismo, le stragi ed il contesto storico politico . Redatta dal presidente della Commissione, sénateur Giovanni Pellegrino. Roma 1995, p.204 e 241.
[5] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 12ª sessão , 20 Março 1997
[6] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 9ª sessão , 12 Fevereiro 1997
[7] Jeffrey M. Bale, "Right wing Terrorists and the Extraparliamentary Left in Post World War 2 Europe : Collusion or Manipulation ?" No periódico britânico Lobster Magazine , n°2, Outubro 1989, p.6.
[8] Semanário francês Paris Match , Novembro 1974. Citado em Stuart Christie, Stefano delle Chiaie (Anarchy Publications, Londres, 1984), p.27.
[9] Egmont Koch e Oliver Schröm, Deckname Aginter. Die Geschichte einer faschistischen Terror Organisation , p.4. (Ensaio não publicado de 17 páginas. Sem data, por volta de 1998).
[10] Ver Christie, delle Chiaie, passim.
[11] Ibid ., p.29.
[12] Este documento parece ter sido descoberto no antigo gabinete de Guérain-Sérac depois da revolução portuguesa. Figura no dicionário do terrorismo na Bélgica de Manuel Abramowicz.
[13] Extracto de Christie, delle Chiaie , p.32. Igualmente em Lobster , Outubro 1989, p.18.
[14] Ibid. , p.30.
[15] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no diário português O Jornal de 16 Novembro 1990.
[16] Ibid . E Christie, delle Chiaie, p.30.
[17] Senato della Repubblica. Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabiliy delle stragi : Il terrorismo, le stragi ed il contesto storico politico. Redatta dal presidente della Commissione , senador Giovanni Pellegrino. Roma 1995, p.157.
[18] Os investigadores Fabrizio Calvi e Frédéric Laurent, especialistas dos serviços secretos, realizaram provavelmente o melhor documentário sobre o atentado da Piazza Fontana: Piazza Fontana : Storia di un Complotto difundido a 11 Dezembro 1997 às 20 h 50 no canal público Rai Due . Uma adaptação em francês intitulada: L'Orchestre Noir : La Stratégie de la tension foi difundida em duas partes no canal franco-alemão Arte quarta-feira 13 e quinta-feira 14 de Janeiro de 1998, às 20h 45. Nesse filme, interrogam uma grande quantidade de testemunhas incluindo juízes que investigaram o assunto durante anos, Guido Salvini e Gerardo d'Ambrosio. Activistas fascistas como Stefano Delle Chiaie, Amos Spiazzi, Guido Giannettini, Vincenzo Vinciguerra e o capitão Labruna, o antigo primeiro-ministro Giulio Andreotti, assim como Victor Marchetti e Marc Wyatt da CIA.
[19] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi.
9ª sessão , 12 Fevereiro 1997
[20] Philip Willan, " Terrorists 'helped by CIA' to Stop Rise of Left in Italy " no quotidiano britânico The Guardian de 26 Março 2001. Willan é um especialista das intervenções secretas norte-americanas em Itália. Assinou o muito interessante Puppetmasters. The Political Use of Terrorism in Italy (Constable, Londres, 1991).
[21] Diário italiano La Stampa de 22 Junho 1996.
[22] Peter Dale Scott, "Transnational Repression : Parafascism and the US" no periódico britânico Lobster Magazine , n°12, 1986, p.16.
[23] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no diário português O Jornal de 16 Novembro 1990.
[24] Koch e Schröm, Aginter , p.8.
[25] Extracto de Christie, delle Chiaie , p.28. [26] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 9ª sessão , 12 Fevereiro 1997.
[27] Koch e Schröm, Aginter , p.11–12.
[28] Semanário português Expresso de 17 Novembro 1990.
[29] Diário português Diário de Noticias de 17 Novembro 1990.
[30] Sem autor especificado, "Ministro nega conhecimento da rede Gladio. Franco Nogueira disse ao DN que nem Salazar saberia da organização" no diário português Diário de Noticias, de 17 Novembro 1990.
[31] Ibid.
[32] Sem autor especificado, "Manfred Woerner explica Gladio. Investigadas ligações a extrema-direita" no diário português Expresso de 24 Novembro 1990.
[33] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no semanário português O Jornal de 16 Novembro 1990.
[*] Historiador suíço, especialista em relações internacionais contemporâneas. É professor na Universidade da Basileia.
(Tradução de Margarida Ferreira, com a devida vénia)