03 março 2012

ANGOLA; PORQUÊ SÓ LUANDA



Grupos de brancos movimentam-se pelas ruas de Luanda. Empunhando cartazes e bandeiras. Tudo natural se, muitas vezes, o objectivo não fosse o incitamento à violência.

Grupos de brancos, envergando camuflados, batem à porta das casas de adobe dos musseques. Fazem-no invocando o nome das Forças Armadas. A porta abre-se – o tiro parte.
Grupos de brancos incitam os brancos de Luanda à violência, através de uma bem cuidada campanha de boatos, de panfletos apócrificos. Outros, ou os mesmos, antes de começar esta segunda fase de guerrilha urbana, incitavam os negros a matar os brancos. Faziam-no nas tascas dos musseques, entre “cucas” e palmadinhas nas costas. Porquê ?.
Nos musseques, a FLNA agia por sua conta, no mesmo sentido. Apelos sucessivos à violência e ao racismo. A principio, com muito pouca audição. À medida que a excitação subiu, à medida que das noites pacificas se quebrou o silencio com tiroteios esparsos e rebentamentos de granadas, a FLNA mais e mais apoio. O medo, sempre o medo, foi a grande cartada sabiamente jogada. Por quem ?.


O Mov. Democrático de Angola e outros agrupamentos políticos lançaram a ideia de um comício no Estádio de S. Paulo bem dentro dos musseques, com o objectivo aberto de apoiar a declaração do reconhecimento do direito à independência de Angola feita pelo general  Antonio Spínola; mas, o verdadeiro objectivo era tentar reunir brancos e negros, já afastados pelos incidentes até então acontecidos, num mesmo comício.
O comício falhou porque as Forças Armadas destacaram apenas tropas brancas para montar a segurança ao estádio. Mas o objectivo foi atingido, porque centenas de brancos se deslocaram ao estádio de S. Paulo para demonstrar que queriam e podiam participar na vida de um país finalmente livre e na construção de uma sociedade finalmente justa. O comício realizou-se fora das portas do Estádio e – consequência da “frente” de Bukavu -  bandeiras do MPLA e da FLNA foram erguidas em conjunto.


A reacção branca aproveitou a ocasião para lançar uma bem orquestrada e meticulosamente preparada campanha destinada ao lançamento da UNITA em Luanda.
Inventou-se um incidente no Bairro do Golfe – negros tinham rasgado, à frente da tropa e de um oficial, a bandeira portuguesa e hasteado em seu lugar a bandeira do MPLA. Começaram a circular novas histórias de violência cometidas contra brancos. Os comerciantes e outras gentes desorientadas correm ao Palácio do Governo Geral, que invadem literalmente. O vice-almirante Rosa Coutinho corre risco físico. Entretanto, cerca de quarenta manifestante brancos apresentam-se frente à sede da Polícia  de Segurança Pública para demonstrarem apoio a esta corporação, cujo saneamento foi anunciado superiormente há bastante tempo. Em volta deles começa a juntar-se mais gente, muitos policias desfardados. A manifestação acaba por se transformar numa manifestação de apoio a Jonas Savimbi, chefe da UNITA. “ Os brancos estão com Savimbi” – lia-se em cartazes. Os policias, das varandas do primeiro piso do edifício, juntam as mãos em agradecimento e erguem-nas acima da cabeça. Era o cair da tarde. Chegam viaturas com fuzileiros de camuflado. A multidão, umas mil pessoas incluindo os mirones – mas logo volta a avançar para ouvir um oficial da PSP, através de um megafone, pedir civismo e calma e dizer  “que não é assim que se lhes dá força”. Um oficial da policia, à civil, encaminha a manifestação para o Palácio.

A célebre Casa do Povo na Av. Brasil, local onde se iniciaram quase sempre as mais graves provocações ao povo angolano, guardada por um guerrilheiro ELNA , Exército da FLNA, antes da sua "conquista" e do fim do terror, processo em que as FALA, forças da UNITA, não intervieram, à semelhança do que tem acontecido quase permanentemente.
Ouvem-se gritos de “Viva a UNITA”, de “Viva Portugal” de “Viva Angola independente”, de “Viva a policia”. Elementos estrategicamente colocados controlam, tanto quanto possível, os manifestantes. Antes duas moças de cor e um jornalista que tiravam fotografias  são obrigados a refugiarem-se numa livraria, que fecha as portas para impedir depredações. O jornalista seria sovado, brutalmente, depois, dentro da sede da PSP, por elementos vestidos à civil. Hoje, é um “homem marcado”: quando sai à rua é reconhecido e agredido. Chama-se Manuel Rodrigues Vaz e é redactor de “O Comércio”.


Uma das duas moças seria agredida também, depois de sair da Policia. Começa a “caça aos MPLA”. Manifestantes voltam a cercar o estúdio do programa de radio independente “Café da Noite”; há uma tentativa de invasão de “A Província de Angola” (!); a Emissora Oficial é cercada por cerca de 300 brancos. Cortejos de automóveis, buzinas, gritos à UNITA, bandeiras portuguesas. O presidente da Junta Militar decreta, pela primeira vez em Angola e em Luanda, o recolher obrigatório. Os manifestantes desrespeitam-no. Continuam a percorrer as ruas asfaltadas, até à uma e meia da manhã. Impunemente.
Nessa noite, começa a nova série de incidentes nos musseques. O FLNA aproveita, por sua vez, a ocasião para aumentar a onda de violência. Os quadros do MPLA desfalcados tentam impedir o alastramento do conflito. A população pacifica dos musseques vê-se entre o fogo das Forças Armadas, dos “comandos” de contenção do MPLA. Tiroteios esparsos, rebentamento de granadas.
Na manhã seguinte, a cidade do asfalto acorda com propaganda à UNITA escrita em todos os cruzamentos importantes, grandes letras de cal, no chão. Manifestantes brancos cometem toda a sorte de tropelias, bem dentro da cidade branca. Mandam evacuar e fechar restaurantes e lojas e industrias. O Poder, naquela manhã, estava praticamente caído nas ruas.
No Hospital de S. Paulo volta a haver trabalho de emergência. Feridos às centenas, mortos menos. Quase todos negros. A clivagem está conseguida: brancos de um lado, negros de outro. O desprestigio do MPLA, sabiamente orquestrado, acentua-se: a população branca cai nos braços da UNITA, que já conseguira milhares de adesões no Sul de Angola, acolhe “desertores”, em massa, das tropas negras “Ges”, milícias armadas e do “exército privado” da ex-PIDE/DGS/PIM,  os “Flechas”.


Informações não controladas, portanto apresentadas ainda com reservas, dizem que a UNITA está a receber quantidades industriais de armamento da África do SUL. O dr. Jonas Malheiro Savimbi, aproveitando-se inteligentemente dos desacordos internos dentro do MPLA joga a sua cartada e ganha. A UNITA tem o apoio das associações económicas de Angola. Aparecem em Luanda panfletos apócrifos (a assinatura do MPLA sob eles é, obviamente falsa) dizendo que a carne de branco é excelente.


Os musseques estão praticamente em pé de guerra. Erguem-se barricadas. Os comerciantes vêem as lojas incendiadas e algumas delas pilhadas. São avisados, com antecedência, para se porem a andar. Eles e outros elementos da população branca são o braço armado da reacção. Delegações ao Palácio, manifestações nas ruas – sempre pouco numerosas - , insultos aos negros, o insulto aberto, a ameaça aberta...
Começam a ouvir-se tiros também durante o dia. O medo cresce. A desconfiança cresce. A convivência entre negros e brancos começa a tornar-se num mito. O FLNA engrossa as suas fileiras com simpatizantes do MPLA. Nos subúrbios acontece exactamente o mesmo que na cidade branca. Campanha de desprestigio das Forças Armadas, nem sempre a actuar com decisão e a oportunidade que se impõe, leva os negros a armarem-se com armas rudimentares.
Além destas, alguém fez “aparecer” pistolas, carabinas e pistolas-metralhadoras. Poucas ainda. Mas suficientes. Continua a morrer gente. Feridos continuam a chegar ao Hospital de S. Paulo, este mesmo, alvo de tiroteio por atiradores emboscados, durante duas noites seguidas. Luanda está à beira do pânico. Tanto a Luanda do asfalto como Luanda do subúrbio, donde todos os dias qualquer coisa como mil famílias partem para  “a terra”.


O “volte-face” da situação parece ter começado agora. Os dias e as noites a aparecer mais calmas, embora os tiroteios esparsos continuem a registar-se. Um avião especial leva comerciantes e suas famílias para Portugal. Reabre-se o campo de concentração de S. Nicolau, para acolher prisioneiros de delito comum. (O director deste campo, contra quem impedem gravíssimas acusações, fugiu da cadeia e continua a monte e a prémio !).


Tropas especiais vindas de Lisboa, fuzileiros e “comandos” com ordem para se deixarem de meiguices começam a controlar a situação delicadíssima. Criada por quem ? Pelo que se disse, transparece um planeamento cuidadoso. Quem o guisou ? Por enquanto, apenas suspeitas.
Ainda é cedo para dizer se a calma voltará a Luanda, se será possível começar, se será possível pôr cobro ao ódio tão cuidadosamente ateado. Luanda está à beira do abismo. Ainda é possível que tudo volte à normalidade ?.


FOTOS DE: Oscar Saraiva
                     J. P. Laffon

TEXTOS DE: Moutinho Pereira
                       António Macedo

Datas: Agosto de 1974 e   Julho de 1975

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