A guerra colonial começou há cinquenta anos. Apesar de trabalhos de grande fôlego na ficção, da grande seriedade e rigor histórico e científico de obras históricas e de investigação dedicada, o que continua em vigor e a determinar a atitude da população é a mitologia patrioteira (cada vez mais equivalente a patriótica, mas vamos devagar).
Ela é propagada pelas versões oficiais da burguesia e seus criados políticos a fim de manter uma atitude cidadã de baixo perfil que aceite a participação activa em novas aventuras coloniais sob as ordens dos EUA e do imperialismo em geral, que desculpabilize a sua responsabilidade nos crimes contra a humanidade que são cometidos pelas tropas coloniais nesta guerra infinita contra os povos.
Quando eclodiu a guerra colonial, as colónias ainda só existiam, enquanto tal, há 76 anos. O amor acrisolado e a patriótica vinculação àquelas terras tão «portuguesas como o Minho», tinha poucas raízes para além dos Lusíadas, da História Trágico Marítima, da Peregrinação, do Zé do Telhado ou do Amor de Perdição. No princípio do século XX viveriam em África 12 mil portugueses, e apenas ao longo da costa. A primeira República que entrou na carnificina da I Guerra Mundial para garantir a posse das colónias, lançou as bases de uma efectiva exploração colonial. Depois do golpe de 28 de maio de 1926, a exploração colonial permitiu a acumulação fácil e rápida do capital à burguesia industrial e financeira e capacitou-a para se interpenetrar com o capital imperialista, numa situação de progressiva e rápida dependência. A sociedade colonial assentava na exploração total e integral do negro, ultrapassando a própria situação de escravatura. Os colonos, do mais boçal ao mais esclarecido, tinham, na prática, poder de vida e de morte sobre ele. O indígena recebia o estritamente indispensável para pagar o «imposto de cabeça» devido pelo simples facto de se saber que ele existia e para pagar o que era obrigado a comprar na cantina da fazenda ou da roça. Era-lhes vedada qualquer actividade política e sindical, a língua ou dialecto não eram tidos em conta, foram expulsos das terras férteis e não usufruíam de direitos. Quando muito a protecção que o patrão lhes quisesse dar. Exceptuavam-se, usufruindo de alguns direitos, cerca de 2,5% de assimilados.
Este o Portugal pluricontinental e multiracial. Não poderemos admirar-nos se as primeiras rebeliões, de camponeses e contratados, sob a direcção tribal da UPA, foram de uma violência inaudita. Se até o sofisticado racismo britânico não foi poupado no Quénia!... Como um dia disse Amílcar Cabral, «quando morrem inocentes ninguém é inocente» A pátria que quase um milhão de soldados defendeu durante 13 anos era constituída pela família Mello, pela família Champallimaud, com associações de passagem ao conde de Caria e ao visconde de Botelho; a família Quina, a família Espírito Santo, as famílias Feteira-Bordalo, Vinhas, Albano Magalhães, Abecassis, Sousa Lara, pelo Grupo Fonsecas e Burnay e mais o Banco Nacional Ultramarino . Estão aí, todos, a mandar no país. Por eles, a mando deles, deram a vida mais de 8 mil portugueses, ficaram feridos 30 mil, estão gravemente feridos na mente mais de cem mil – com o passar dos anos e o envelhecimento este número vai aumentando até que a morte o faça diminuir e depois acabar – e uma infinidade ferida na alma. Por eles, a mando deles, as despesas do Estado ficaram hipotecadas em grande escala à guerra. Por eles, a mando deles, deram a vida cerca de 300 mil africanos a que se deverá acrescentar as vítimas, por eles a mando deles, dos massacres anteriores à guerra colonial: Batepá, em S Tomé em 1953, Pidjiguiti, Guiné Bissau em 1959, Mueda, Moçambique em 1960, Baixa do Cassange, Angola em 1961, seguido do massacre urbano como retaliação ao ataque à cadeia de Luanda pelo MPLA, em 4 de Fevereiro de 1961 data oficial do início da luta armada contra o colonialismo. Estes massacres foram o sinal de que nada havia a esperar do poder colonial, de que era impossível contar com uma solução negociada mesmo tendo em conta o carácter serôdio, já fora da história, do ultra-colonialismo português. Depois foram os treze anos de guerra. Uma guerra tecnicamente de baixa intensidade, mas, humanamente, de alta brutalidade. No seguimento, aliás, da colonização que foi tudo menos sofisticada, assentando num racismo rural que dava para fazer vida com as negras e delas ter filhos e para mandar enforcar o irmão delas se fosse demasiado recalcitrante, incómodo ou, apenas, pouco submisso.
Nas guerras de libertação, as populações são sempre confundidas, usemos o eufemismo oficioso, pelo colonialista ou pelo ocupante com o inimigo – veja-se as tropas da coligação no Iraque. A realidade é que não pode ser de outro modo. Salvo aquela parte que está disponível para colaborar, por razões diversas, a população é ou virá a ser um inimigo, com ou sem arma. A violência do exército colonial português não foi maior por se tratar de um exército dirigido por um regime ditatorial. Ninguém espere comportamento decente de quaisquer tropas de ocupação. Ele é impossível. Pelo carácter mesmo do conflito. Na guerra colonial, naturalmente, também.
Claro que as ordens eram, em geral, em sentido aparentemente contrário: conquistar as almas, como diria o general Kaulza de Arriaga, conquistar as mentes como diria o General Spínola, ganhar as consciências como diria o General Costa Gomes, amar as populações como a nós mesmo, terá dito centenas de vezes o General Silvino Silvério Marques. E assim por diante. Enterrem-nos, queimem-nos, apaguem os vestígios, diziam todos depois dos massacres.
A tragédia é que, quem fazia esses massacres e cometia esses crimes, eram jovens arrancados à universidade, à escola técnica, ao amanho da terra, ao trabalho na fábrica. Raramente foram seres marginais recrutados para a guerra, como por vezes se quer fazer crer. E esse foi o outro lado da tragédia: porque uma boa parte dos afectados duramente pelo stress pós-traumático - algo que só muito recentemente as autoridades democráticas se dignaram reconhecer - devem-no aos próprios crimes e violências que terão cometido. Sinal de que a humanidade está viva.
Os crimes na guerra colonial portuguesa – para além do crime primordial decorrente da própria ilegitimidade da guerra e da sua ilegalidade á face da ONU – foram muitos. Crimes de deportação, esboço de crimes de genocídio, de racismo, de escravatura, de assassinato individual ou em massa. Massacres portanto. À luz das leis e regulamentos em vigor podiam e deviam ter sido punidos e desencorajados. Mas não o foram porque isso não interessava, antes pelo contrário, aos altos comandos. Estes aceitavam aquela espécie de esquizofrenia beata e sinistra. Não queriam que qualquer moralidade incómoda contribuísse para uma tomada de consciência nem para diminuição da performance dos militares, ainda por cima quando o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, tinha obra feita sobre a mais vasta questão envolvente: «os indígenas são súbditos portugueses mas sem fazerem parte da Nação»; «os cruzamentos ocasionais ou familiares são fonte de perturbações graves na vida social de europeus e indígenas»; «os pretos têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus, e olhados como elemento produtivo enquadrado ou a enquadrar numa economia dirigida por brancos». Portanto de humano só tinham a forma. Nem os navegantes de quinhentos ousaram tanto. Nas guerras coloniais a estratégia militar conta, substancialmente, com a actuação das polícias treinadas na recolha de informações através dos denunciantes pagos ou voluntários, do terror, da tortura, do assassinato exemplar, do rapto, tudo aquilo que desde a CIA, à KGB, à Mossad, à Sûreté e DST, à PIDE executavam ou executam. O comando das operações conta, pois, com as mais criminosas e sinistras organizações e forças repressivas, sejam legais ou clandestinas.
Assim os militares tentam mostrar-se nobremente com as mãos limpas e as almas lavadas insinuando que o trabalho sujo é feito pelos outros. A PIDE na sua bestialidade congénita era a base de todas as principais informações dos estados maiores militares, extorquidas por todos os meios conhecidos na metrópole e outros dado tratar-se de seres tão bem caracterizados pelo Professor Marcelo Caetano. E de outra maneira não podia ser. As FA’s não tinham serviço de informações adequado para aquele tipo de guerra. Mas, muitos comandos operacionais, não raras vezes optavam por serem eles a encarregar-se da eficaz e atempada recolha de informações. E de fazer justiça a tempo! Ou seja, «o pacífico e generoso» 25 de Abril só foi possível à custa de muitas mortes, muitos crimes contra os direitos humanos e dos povos. A guerra colonial portuguesa inicia-se quando praticamente estavam concluídos os programas de libertação das colónias. Foi uma guerra de regime. O regime sabia que Amílcar Cabral tinha razão quando afirmou que o fim do colonialismo seria o fim do fascismo. Dependia da guerra para sobreviver mas seria a guerra a liquidá-lo. Foram precisos longos anos de sofrimento. Hoje defende-se serenamente que o regime aguentaria uma transição à espanhola. Dando de barato o papel que a revolução portuguesa teve na transição em Espanha, o regime de Franco não dependia das colónias e rapidamente abriu mão do Saara, de forma miserável, aliás. A ala liberal de Sá Carneiro por seu lado, esperava que se cumprisse a segunda asserção da frase de Amílcar: pode cair o fascismo e não terminar o colonialismo... Mitigado, claro, mais distante, ligado à Europa! A guerra colonial portuguesa diferiu fundamentalmente das outras, nomeadamente da francesa, porque estas foram «guerras coloniais democráticas».
Sem ironia: - segundo os cânones que hoje começam de novo a vigorar, uma guerra de agressão é legítima e democrática se as sondagens ou as votações no país ou países agressores mostrarem apoio da opinião pública. Mas, segundo os mesmos cânones, o contrário não será tido em consideração. Portanto, a invasão do Iraque foi seriamente contestada mas apenas pelos milhões que não se regem pelos parâmetros dados como referência nos respectivos países. Também a Alemanha e a França aderiram, embora com atraso, ao cânone e deixaram de ligar às suas próprias opiniões públicas mas apenas às «interessadas», para darem o seu acordo ao crime a posteriori, possibilitando a cobertura da ONU. Sabemos porquê, o instinto colectivo de sobrevivência sobrepõe-se às contradições circunstanciais. Por isso o poema de Harold Pinter é, como diria António Machado, a palavra exacta no tempo - Democracy: There’s no escape / The big pricks are out / They’ll fuck everything in site / Watch your back. March 2003.5 Assim, as guerras coloniais da Grã-Bretanha e da França terão sido democráticas. Tiveram apoio popular em democracias consolidadas. A brutalidade dos ingleses resolveu-se elegantemente no appartheid grande e nos appartheids pequenos. E a brutalidade dos franceses, conseguiu ser superior à dos portugueses que tinham como paradigma os Gamas, Castros e Albuquerques, capazes não só de matar a ingente turba mas também de mandar cortar os cascos aos cavalos. As lutas de libertação nacional, as lutas contra o colonialismo, a liberdade das colónias, portanto, tão apoiadas a posteriori pelas democracias actuais, não são filhas da mãe dessas mesmas democracias.
Isto é, não são filhas da grande Revolução Francesa. Só com a preparação e a realização da revolução de Outubro se estabelece a teoria que deu alimento à base material que incitava os povos colonizados à luta de libertação. Também na Índia, onde o movimento pacifista de Gandi surtiu efeito porque acompanhado por muitos levantamentos armados. Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Mandela, Kaunda, Nyerere, N’Kruma, Machel, inspiraram-se nessa teoria, de uma forma ou de outra, mais próximo ou mais afastados - e Franz Fanon, o pai da revolução africana. Por isso, Amílcar Cabral pôde escrever, com razão: «o fim do fascismo pode não significar o fim do colonialismo; mas o fim do colonialismo significará forçosamente o fim do fascismo».
Daí decorre também que toda a lenta subversão das FA’s ao longo de 13 anos de guerra, teve muita inspiração das teorias libertadoras e socialistas. Começara nas universidades, em luta contra a política fechada às artes e ciências, à liberdade de expressão e de pensamento, contra as condições de acesso e programas, a perseguição no interior da própria universidade; e continuara com a oposição à guerra colonial que se tornou depois do Maio de 68 no principal motivo de combate ao fascismo, tomando uma importância tal que envolveu as lutas operárias. Saltou para dentro das FA’s, tendo os profissionais começado a procurar saída para o buraco sem saída. Ou melhor: com uma única saída.
Que a luta do povo português, sofrida mas corajosa - as deserções, as recusas a cumprir ordens avolumando-se, as condições de vida deteriorando-se, os filhos morrendo ou regressando sem braços, sem pernas, sem uns nem outros, a censura e as perseguições da PIDE aumentando na proporção da resistência – ajudou a encontrar. E que a luta dos povos coloniais, ao impor uma derrota militar no terreno ajudou a apressar.
Por isso Spínola apenas teve, naturalmente, o apoio de todos os fascistas à sua resistência contra o programa de independência imediata das colónias, mesmo sendo ele o putativo - apenas isso – chefe da rebeldia. A chamada federação que ele preconizava era uma esperança para segurarem alguns anéis africanos que os outros nunca os perderam verdadeiramente. Daí quererem que fossem mais tropas para África para se fazer uma «descolonização decente» como diz o protofascista Paulo Portas, actual Ministro da Defesa do Governo de Durão Barroso. Uma descolonização com o que tal implicava de acordos, consensos, planos comuns para interesses convergentes, já só teria sido possível em 1961 quando um grupo de generais ameaçou debilmente Salazar, pressionados quer pelos apelos e exigências de Amílcar e outros líderes africanos para uma autodeterminação pacífica quer pela suspeita do desastre em preparação. Mas Salazar brincou com eles e daí a meses estava a mandar as tropas «para Angola e em força» cantando «Angola é nossa».
No 25 de Abril os capitães tinham as rédeas embora tenham feito concessões de que se viriam a arrepender: a Spínola, a Personalidades impantes que achavam dever sofrear a liberdade à solta na rua, porque para eles a liberdade deveria apenas servir à sua medida. Também, naturalmente, muitos capitães procuravam o seu caminho dentro da disputa livre, aberta, democrática. Só que a maioria não o fez às claras. Ora, em democracia, ou há claridade ou entra-se no reino da hipocrisia, da mentira, da corrupção. O que decorria, obviamente, da revolta dos capitães, era o fim da guerra. E o fim da guerra significava a independência das colónias. E a independência das colónias exigia negociar com quem fazia a guerra (independentemente de proximidades ou distâncias ideológicas, como reconheceu na altura o próprio Mário Soares). Negociar naquelas circunstâncias significava acordar a transmissão de poderes entre dois aliados que tinham acabado de vencer o mesmo inimigo, mas em que um deles não estava em condições de exigir mais do que respeito e dignidade. E isso aconteceu. Não houve descolonização, nem boa nem má. De facto, por de cima de todas as reflexões e locubrações mais ou menos teóricas, não havia tropas disponíveis nem dispostas a continuar a matar e a morrer quando a liberdade do povo português e dos povos das colónias era a única palavra audível.
Depois a palavra socialismo juntou-se-lhe – mobilizando o povo para as grandes conquistas democráticas. O móbil do movimento dos capitães, é preciso não esquecer, fora acabar com a guerra. Porque a guerra estava perdida, antes de todas as teorias e ideologias começarem a fazer, muito justamente, o seu caminho. Para acabar com a guerra só derrubando o regime e para derrubar o regime houve que desagregar as Forças Armadas que eram o seu sustentáculo e o seu instrumento numa guerra perdida desde o seu primeiro dia, no longínquo 4 de Fevereiro de 1961.
E essas Forças Armadas tinham acabado de prestar, um mês antes, vassalagem ao ditador. (*1)
Por isso foi possível o PREC. A força da hierarquia e da repressão estava quebrada e os soldados respondiam aos apelos populares virando a cara aos generais que não tinham sido destituídos ou mesmo presos – por pouco tempo. Assim, hoje, para as Forças Armadas portuguesas o momento de maior glória não foi o 25 de Abril – que não sabem comemorar, porque realmente não o fizeram! - mas a guerra colonial. Mas dentro do seu próprio e vetusto cânone, sabem dar apoio ostensivo e já oficial às manifestações de nostálgicos dos privilégios da guerra e do fascismo.
Que aproveitam a lassidão da democracia e a vetustez das caquéticas FA’s, para pressionarem no rumo do seu ministro da defesa. FA’s que fingem ignorar que, se não fosse o 25 de Abril, teriam sofrido a mais vergonhosa derrota da sua história. E foi o encontro dos povos mutuamente libertados, o encontro entre os falsos inimigos inventados pelo fascismo e pelo colonialismo, agora unidos pela liberdade, foi a aura resplandecente desse acto primordial de criação que envolveu também as FA’s, tornando-as parte da vitória – a única felizmente possível - que tanto fizeram para impedir.
( Texto de Mário Tomé, c/ o agradecimento do editor )
nota (*1) foi acrescentado, refere-se a 16 Março de 1974. C. Filipe