19 março 2011

AUTISMOS - por Fernanda Câncio







Na terça-feira, o PR fez um discurso em que apresentou os soldados da guerra "do Ultramar" como exemplo, pela sua "coragem, desprendimento e determinação", para os jovens de hoje. A coragem, o desprendimento e a determinação de quem era obrigado, num regime ditatorial, a ir para uma guerra condenada pela ONU. O discurso inclui ainda uma saudação "de especial apreço" aos "militares de etnia africana que lutaram ao nosso lado" - vincando assim a divisão clara que existe na cabeça de Cavaco entre "nós", os "brancos" (de etnia europeia?!), portanto os portugueses, e os negros, que teriam então, de acordo com tal lógica, lutado do lado que não era o deles.
Qualquer que seja a opinião sobre o que Cavaco disse - sendo infelizmente possível que muita gente aplauda - é inegável ser a primeira vez que um PR da democracia apresenta a guerra colonial como uma gesta a imitar, e assume tão claramente o seu racismo (não há outra palavra, e tenho mesmo pena). Mas durante todo o dia ninguém nas TV, rádio e jornais online parece ter-se dado disso conta. A maioria das notícias que veicularam o discurso tinham aliás como título referências à actual crise política e ao facto de o PR não a comentar. Este silêncio noticioso explica em parte a quase total ausência de reacções institucionais (excepção para o BE, com Louçã a escrever uma crítica contundente no Facebook). As primeiras peças sobre o assunto só surgiriam na quarta - e isso apesar de desde o início da tarde de terça blogosfera, Twitter e Facebook terem explodido em censuras ao discurso.
Muito há a dizer sobre o que Cavaco disse; mas por mais grave que seja, e para mim é, a gravidade do autismo jornalístico assim exposto surge-me bem pior. Alheios a tudo o que não seja a superficialidade artificial da guerrilha político-partidária, os jornalistas são cada vez mais incapazes de perceber o que vêem e ouvem. Vão para os sítios com guião: "Vê se ele comenta não sei quê/responde a não sei quem." Pensamento zero. Interpretação e reflexão, nada. E isso, é preciso dizê-lo, contamina a actividade política e a sociedade em geral. Explica em parte que, perante mais um pacote de medidas gravosíssimas que incluem, incrivelmente, o congelamento das pensões mais baixas, não tenhamos tido, da parte do Executivo, uma fundamentação, quantificada e justificada (Quanto vale esse corte? Por que raio se corta aí e não noutro lado?) dessa proposta; explica que na sua entrevista o PM não tenha sido questionado sobre tal.
Não explica, claro, que não tenha ele próprio percebido que era sobre isso, e não sobre o que o PSD faz ou deixa de fazer, que o queríamos ouvir; não explica que não tenha começado por assegurar aos portugueses que entende a sua revolta e amargura (expressas nas manifs de sábado) e as tem em consideração.
É uma escolha, isto de fazer da política uma bulha de sound bites, insultos, perdigotos e claques. É isso que queremos?

( com a devida vénia e créditos, a transcrição do publicado no "Diário de Noticias" em ´Opinião´ , da autoria de Fernanda Câncio. 18 Março 2011 )

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