Mercado nativo (nº103 colecção Foto Serra - Bissau, com a devida vénia) |
CLASSES E LUTA DE CLASSES EM ÁFRICA ( I )
Dada a inexistência de uma burguesia nacional bem estruturada e numerosa ou de um proletariado consciente e organizado o movimento de libertação nacional africano teve, a dirigi-lo, quase sempre, uma pequena burguesia urbana de funcionários, de empregados e de pequenos comerciantes que foram formados ao serviço do próprio estado colonial sendo os únicos capazes de tomar o aparelho de estado, depois de afastado o poder colonial.
É esta pequena burguesia nacional que se vai tornar, depois da independência, uma burocracia de Estado já que é ele que controla o monopólio da educação moderna e da técnica além de se servir de uma experiência do poder, que exercia já na altura da administração colonial. Ela torna-se, assim, a força social motriz e a nova classe dirigente, quer política, quer economicamente.
Do ponto de vista económico essa “burocracia estatal” terá duas alternativas: ou orientar-se para um capitalismo privado, ou para um capitalismo de Estado à maneira soviética.
Uma terceira possibilidade seria a de uma pequena burguesia se aliar aos operários e camponeses que por sua vez terão a obrigação de tomar e controlar o poder para fazer a revolução. Esta possibilidade, que seria a do socialismo, não teve, até hoje, grande aceitação em África onde ela tenderia a opor-se ao neo-colonialismo e aos interesses das grandes potências.
O papel das massas populares urbanas e rurais foi sempre pequeno nos países africanos independentes, embora elas tenham sido capazes de rebeliões importantes (casos do Kenya, do Congo, dos Camarões, do Sudão, etç) a sua pressão raramente conduziu, depois da independência a atitudes mais severas com a burguesia privada..
Mas crescendo em espaços restritos, que são os respectivos Estados, as burguesias nacionais africanas dificilmente sairão dos horizontes limitados desses Estados. Não vivemos já em tempos que possibilitem às burguesias dos diferentes países coexistir, cada uma num domínio, com relativa independência. A mundialização dos problemas arrisca a que as burguesias nacionais sejam apenas o apêndice das forças mais poderosas à escala mundial. Isso verificar-se-à enquanto os países subdesenvolvidos se mantiverem o que são: exportadores de produtos primários, privados de industrias de base.
Por outro lado o desenvolvimento do capitalismo na África Negra é ainda embrionário visto os vestígios do passado, nomeadamente a sobrevivência das estruturas tradicionais (as solidariedades étnicas, por exemplo) mascararem, frequentemente, as estruturas novas (as solidariedades de classes ou grupos definidos pela sua posição no sistema capitalista).
Mas pergunta-se: Quais as classes que existem em África (na África Negra) e qual a sua reacção perante a independência ?.
1. A “inteligentia” e intelectuais
Durante o colonialismo a “inteligentia”, ou seja a “elite africana”, serviu de laço de ligação entre o poder colonial e as massas populares. A sua origem eram as famílias dos chefes das aldeias e das camadas endinheiradas da população, que o poder colonial se esforçava por colocar ao seu serviço embora limitando o seu crescimento ao mínimo do que necessitava. Esta “elite” vai-se alienando das raízes tribais e aldeãs e tornando-se, culturalmente, europeias e ocidentais, mais do que africanas.
O exemplo inglês é expressivo da maneira como se formou essa elite de intelectuais. Assim, por exemplo, a educação ministrada nas colónias inglesas era uma imitação restrita do modo de educação dado na Inglaterra, mesmo tipo de ensino e de escola, etç.. A sua finalidade era clara: criar quadros capazes de se tornarem assistentes do poder colonial, em todos os campos, e assegurar o desenvolvimento de uma elite cuidadosamente seleccionada.
Os Belgas e os Portugueses seguiram outro raciocínio nos territórios que controlavam em África. Para eles “sem elite não haverá perturbações” e portanto era necessário, a todo o custo, evitar a formação de uma intelectualidade africana.
Durante a luta pela independência a inteligentia orientou o movimento nacionalista, pelo menos nos primeiros tempos deste. Ela ambicionava substituir o poder colonial mas não desejava uma transformação radical da sociedade – o seu objectivo era controlar o sistema não o modificando. Por isso a sua mentalidade era burguesa e contrária à transformação socialista revolucionária.
Depois da independência a coesão que a elite africana demonstrara antes da independência desaparece logo que esta é alcançada. Dá-se então a divisão em tres grupos principais:
- Uns apoiam a nova classe dominante, a burguesia indígena e privilegiada ( em geral burguesia burocrática, política e negociante). São estes “intelectuais” que se tornam, em África, os ideólogos do anti-socialismo e do anti-comunismo e dos valores políticos e económicos do capitalismo.
- Outros propõem uma “via não capitalista” para o desenvolvimento económico. Uma economia mista como fase de desenvolvimento necessária antes do socialismo.
- Uma terceira camada de inteligentia consiste em intelectuais revolucionários que, em geral, se tornam os lideres da luta dos operários e dos camponeses para a construção do socialismo. São produtos minoritários dos estabelecimentos de educação colonial e a sua tarefa é enunciar e promover os objectivos da revolução socialista em África.
Em todo o caso as aspirações da maioria da inteligentia e dos intelectuais de África são características da classe média. Pretendem o poder, o prestigio, a riqueza e a posição social para eles e para as suas famílias.
2. A chamada “Burguesia Africana”
Antes do período colonial o poder dos chefes das aldeias africanas era estritamente limitado e controlado não se baseando na posse da terra.
O colonialismo reforçou o poder dos chefes e transformou-os, quase sempre, nos agentes locais do colonialismo, integrando-os na sua administração. Assim os chefes das aldeias constituíram, durante o colonialismo, uma verdadeira “nobreza feudal” que apoiava a exploração do imperialismo recebendo uma parte dessa exploração. Ainda hoje restos desse “feudalismo africano”, dominante durante o período colonial e não antes, visto antes não existir propriedade privada da terra, existem em muitas partes de África como sejam o Norte da Nigéria e parte das colónias portuguesas (na Guiné, por exemplo, essa “nobreza” constitui um dos pilares do colonialismo português combatendo, com mais fervor do que o exército português, os movimentos de libertação).
Mas apesar da existência dessas relíquias feudais, a principal consequência do período colonial, foi a introdução de estruturas sociais capitalistas. Nesse período verifica-se o crescimento da pequena burguesia e de uma pouco numerosa mas influente burguesia nacional, formada sobretudo por intelectuais, empregados civis, membros de profissões liberais, e oficiais das forças armadas e da policia. Como o empreendimento industrial era desencorajado pelo poder central, notava-se a inexistência de capitalistas entre a burguesia – eram os estrangeiros que controlavam a exploração de minas, as empresas industriais, os bancos, o comércio internacional, etç.
Na sua grande maioria, a burguesia era, de facto, uma pequena burguesia.
Foram em parte as restrições ao desenvolvimento da burguesia africana que levaram esta a opor-se ao domínio imperialista. Depois da 2ª Guerra Mundial os imperialistas viram-se obrigados a admitir parte da burguesia africana em esferas que até aí lhe eram excluídas.
Assim mais africanos foram admitidos na máquina do Estado e nas companhias estrangeiras alargando as bases de uma elite estritamente ligada ao capital estrangeiro e dele dependente, enquanto os partidos e os sindicatos progressistas eram mais severamente reprimidos.
Durante a luta de libertação a pequena burguesia tendeu a dividir-se em três categorias principais.
Uns, mantiveram-se fortemente comprometidos com o colonialismo e o capitalismo.
Outros constituíram a “pequena burguesia ”revolucionária”” e nacionalista que ansiava pelo fim do domínio colonial embora não desejassem uma transformação da sociedade.
Finalmente uma terceira camada, “sentou-se comodamente” e esperou.
Em geral poucos membros da burguesia africana tinham capital suficiente para se tornarem independentes. A maioria constituía uma “classe compradora” subordinada ao capital estrangeiro e que só podia assenhorar-se do poder com apoio dos elementos feudais e reaccionários dentro do país e o sustento político, económico e militar do capitalismo internacional.
O imperialismo pode encorajar certos movimentos de libertação e dar a independência política a países onde tenha possibilidades de pôr os partidos reaccionários e as forças burguesas indignas sob custódia. É curioso notar que em quase todas as lutas de libertação nacional apareceram dois partidos. Um era o verdadeiro Partido do Povo, lutando pela independência política e pelo socialismo. O outro é apoiado pelo imperialismo e pretende apenas a independência política, preservando as estruturas capitalistas.
Na maioria dos estados independentes de África existe uma burguesia rural embrionária que frequentemente não tem consciência de classe embora conheça o seu poder e importância.
Durante a luta pela independência os trabalhadores urbanos, os camponeses e a burguesia nacional aliam-se para afastar o poder colonial, mas logo que a independência é obtida, os conflitos de classe reaparecem.
Mas pode acontecer que a luta pelo poder se dê entre várias camadas ou grupos da mesma classe. É o que se verifica em África onde frequentemente se sucedem vários golpes de estado num único país e todos eles de origem burguesa. Essas lutas dão-se entre as classes proprietárias e não entre classes diferentes e as suas razões são de ordem económica embora outros factores como sejam o regionalizo e o “tribalismo” possam também exercer influência.
O “tribalismo” é usado como uma fórmula para obscurecer as forças de classe criadas na sociedade africana pelo colonialismo. No neocolonialismo o “tribalismo” é explorado pela burguesia dominante como instrumento de poder político, mas muitos dos chamados conflitos tribais são de facto forças de classe em conflito; o processo tem a aparência de uma confrontação tribal mas de facto faz parte da luta de classes.
Uma das mais importantes camadas da burguesia nos modernos estados africanos é a chamada burguesia burocrática de que já se falou. Embora não seja uma elite coesiva, a burocracia está em geral comprometida com o tipo de desenvolvimento capitalista e é dos mais devotados agentes do neo-capitalismo. A sua educação e a sua posição de classe afasta-as e isola-as da população em geral. Ela constitui o filho “corrompido” dos governos neocolonialistas, mantendo estreitos laços com as firmas estrangeiras, com os diplomatas dos países imperialistas e com as classes exploradoras de África.
Como já salientado, a burguesia africana, não pode ser vista isoladamente. Ela depende da burguesia internacional e é apenas o policia local do imperialismo e das grandes firmas multinacionais que necessitam manter os trabalhadores e os camponeses de África em sujeição permanente.
É a burguesia indígena que auxilia a finança-monopolista-internacional (agora suportada na globalização) a explorar a África e a frustrar os fins da Revolução Africana
Rapaz balanta (nº108 colecção Foto Serra - Bissau, com a devida vénia) |
3. O Proletariado
Um proletariado moderno existe já em África embora seja numericamente pequeno.
A emergência dessa classe operária está associada com o colonialismo e com o capital estrangeiro. Nas áreas onde a industrialização é ínfima o proletariado é pouco numeroso. Mas noutros países, como no Egipto e na África do Sul, de economia mais desenvolvida, o proletariado existe já, como classe consciente e politicamente organizada desde os anos 20.
Por altura de 1962 estimava-se em 15 milhões o número de trabalhadores africanos empregados na agricultura (cerca de 50%), na industria e nos transportes (40%) e nos serviços civis e estabelecimentos de comercio (10%). Este número embora pequeno, se o comparar-mos com outros continentes é no entanto potencialmente importante se atendermos à força organizativa desta classe e à solidariedade com os movimentos proletários de todo o mundo.
Sob o colonialismo a luta dos trabalhadores dirigia-se mais contra o explorador estrangeiro. Era fundamentalmente uma luta anti-colonial. Ainda hoje, nas condições do neo-colonialismo, a luta dos trabalhadores da África tende a voltar-se contra os Europeus, os Libaneses, os Indianos e outros não africanos, enquanto os reaccionários locais são tolerados.
Em geral a migração das zonas rurais africanas para as cidades nos últimos anos tem originado um grande crescimento na população urbana de África.
Esta ficou constituída pelas seguintes classes e camadas sociais, algumas já estudadas:
1ª A classe burguesa com as suas elites intelectual, burocrática, militar, de negócios, política, e empresarial e à qual se juntam os professores, o clero, pequenos negociantes, funcionários de departamentos governamentais, lojistas, etç.; e , também a chamada classe média, de artesãos, artistas, comerciantes e trabalhadores especializados.
2ª Classe trabalhadora compreendendo a grande massa dos pequenos comerciantes, os trabalhadores manuais, as mulheres de mercado e os trabalhadores migrantes.
3ª Finalmente o lumpen proletariado, de mendigos, prostitutas e vagabundos em geral; e em ligação com a pequena burguesia ou com famílias de operários, uma camada de jovens, em geral desempregados e vivendo a expensas de sua família, e que tiveram importante papel na luta pela libertação, podendo tornar-se importantes quadros revolucionários.
O proletariado rural, pequenos fazendeiros e trabalhadores das plantações agrícolas directamente integradas na orbita do comércio e da industria internacional, são laços estratégicos na luta do proletariado em África. Todavia, actualmente, cerca de 90% do investimento estrangeiro em África é dirigido para sectores chave onde o proletariado industrial é dominante (minas, comercio, manufacturas, comércio de retalho, etç.).
4. Estrutura social rural da África
O campesinato africano é formado por dois tipos de classes, as exploradoras e as exploradas. As primeiras, são quatro:
(1) Proprietários de plantações;
(2) Proprietários não residentes nas suas terras;
(3) Fazendeiros (relativamente grandes proprietários);
(4) Pequenos fazendeiros.
Os proprietários de plantações são, em geral estrangeiros. As plantações são extensões de monopólios em África. A exploração dos trabalhadores africanos nestas plantações, é possível devido ao baixo nível de vida dos trabalhadores, o que possibilita que os monopólios lhes dêem baixos salários.
Os proprietários não residentes são principalmente proprietários agrícolas que vivem nas áreas urbanas (e luxuosas) enquanto, com a ajuda de capital, controlam vastas extensões de terra nas áreas rurais. Vivem da exploração do trabalhador a qual, é feita, em geral, por intermédio de pagamento em géneros.
O fazendeiro é normalmente um proprietário indígena que vive com a sua família, na sua fazenda. Em geral, está ligado aos monopólios de exportação.
O pequeno fazendeiro é um pequeno proprietário que possui também alguns instrumentos e animais domésticos. Usa o trabalho da sua família e aluga o trabalho de outros em períodos necessários e restritos. Aspira a tornar-se um fazendeiro próspero e rico. Preocupa-se com a produção de produtos para consumo local.
Camponeses: o camponês é o mais pequeno proprietário rural. A sua vida é governada pela insegurança e está largamente dependente das forças naturais. Esta classe pode tornar-se uma classe revolucionária desde que dirigida pelo proletariado rural e urbano.
Proletariado rural (atrás referido), é parte da classe trabalhadora e é o extracto mais revolucionário das áreas rurais de África. O regime de propriedade rural fundamental é, em África, o da pequena propriedade, excepto nas regiões onde há regime de subsistência e um sistema de posse comunal de terra.
Qual o reflexo desta estrutura social nas colónias portuguesas em África
Vejamos o caso da GUINÉ BISSAU:
A clivagem social essencial na Guiné delimita de um lado as etnias islamisadas e do outro os animistas.
Os islamisados 30% do total, mais ou menos, são os fulas e os mandingas. Constituem sociedades dotadas de uma aristocracia semi-feudal. O seu modo de produção está mais avançado, na evolução histórica, do que o dos animistas. As diferenciações sociais estão já largamente acentuadas e nota-se a existência da escravatura patriarcal.
Os animistas pertencem a um grande bloco étnico que vai, seguindo a costa do Senegal à Costa do Marfim. O seu traço característico é a inexistência de qualquer organização superior de carácter político. Constituem cerca de 70% de população. As classes de idade constituem aqui a diferenciação social mais importante. A comunidade está muito menos degradada do que nos muçulmanos. Os principais grupos são os Balantas, os Felupes, os Bijagós e os Manjacos.
As camadas sociais nas zonas rurais recobrem estreitamente as diferenciações existentes nas tribos, e são, portanto:
- As grandes famílias senhoriais das etnias fula, mandinga ou manjacos.
- Os comerciantes ou Dioulas que só se mantém no quadro de uma economia monetária e daí a sua atitude dúbia face à luta do PAIGC.
- Os artesãos rurais, adeptos da independência.
- Os camponeses no seio dos quais encontramos diferenciações de pequena importância e cuja posição face à luta do PAIGC varia com o grupo étnico a que pertencem.
- Nas zonas urbanas encontramos os Europeus, que embora em pequeno número não deixam de apresentar rígidas diferenciações sociais entre si, e os Africanos, também divididos em classes de diferentes interesses.
Entre os Europeus distinguem-se:
Altos funcionários, directores de empresa e de bancos em número de 200 ou 300.
Funcionários médios, empregados de comércio e de banco, chefes de loja de 2000 e constituindo uma pequena burguesia branca cujo único objectivo é a acumulação, afim de se retirarem para Portugal.
Operários especializados europeus.
Entre os Africanos as diferenciações são as seguintes:
Alguns altos funcionários “assimilados” sobretudo cabo-verdeanos.
Uma pequena burguesia de médios e pequenos empregados.
Os assalariados que não constituem uma classe operária no sentido europeu do termo e que se repartem entre empregados, vendedores, trabalhadores de oficinas, motoristas, criados, trabalhadores do porto e de transportes fluviais, etç. Na generalidade os assalariados apoiam a luta pela independência, mas conservam, frequentemente uma mentalidade de camponês.
O lumpen proletariado, resultado do êxodo rural.
E finalmente uma camada de jovens das cidades, que embora não sejam assalariados nem se devam considerar como pertencendo ao lumpen proletariado, têm uma certa instrução, trabalham ocasionalmente ou vivem à custa da família. Eles, pelo seu não conformismo e pelas suas aspirações a uma vida melhor, constituem como que um proletariado de ocasião com mentalidade pequeno-burguesa.
Revelam-se particularmente mobilizáveis para a luta e uma parte importante dos quadros médios do PAIGC provem deste grupo social.
Texto extraído da revista "Polémica" 1971/72
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