21 novembro 2010

Libertação da Guiné, Revolução em Portugal (III - IV)












III  NEGOCIAÇÃO E CONFRATERNIZAÇÃO


Embora, na metrópole, a intervenção popular tivesse assegurado profundas e imediatas repercussões para o 25 de Abril, as transformações ocorridas em Lisboa não provocaram alterações súbitas na maior parte do disperso Império Português. Enquanto, em Lisboa, a Junta foi compelida a desmobilizar e a prender os agentes da odiada PIDE/DGS, nas colónias esta foi simplesmente reorganizada sob um nome diferente. Os governadores-gerais foram temporariamente substituídos pelos seus secretários-gerais e o aparelho de estado colonial continuou a funcionar praticamente como antes (53). As forças armadas continuaram a efectuar "operações defensivas". Em Bissau, contudo, a mudança foi imediata e abrupta. Em 26 de Abril, na sequência das notícias vindas de Lisboa, militares locais rebeldes efectuaram o seu próprio golpe: pegaram no governador-geral, Bettencourt Rodrigues, e em vários colaboradores seus e despacharam-nos imediatamente para a capital (54) (bem como outros elementos "que não se quiseram adaptar" à nova situação). A PIDE foi dissolvida e os presos políticos foram libertados. Em Bissau, o MFA colocou-se firmemente no comando...

A reacção inicial do PAIGC às notícias do golpe de 25 de Abril foi a de o saudar, mas, perante as primeiras declarações dimanadas da Junta, declarou que a luta armada prosseguiria. Num inequívoco comunicado emanado do Comité Executivo de Luta, datado de 6 de Maio (embora, segundo parece, apenas divulgado mais tarde, em Argel), o PAIGC insistia em duas conclusões para o início das negociações com o novo Governo da metrópole:

(52) "Era presidente da República Portuguesa, mas agia ainda como se fosse governador da Guiné-Bissau!" [Mário Soares, Portugal: Que Revolução?, Lisboa, 1976, p. 35.]
(53) Especialmente em Angola, onde Soares Carneiro, o secretário-geral do governo colonial, assumiu o controlo, sendo substituído em 11 de Junho por Silvino Silvério Marques, um homem de ideias ultra e que fora governador em Luanda entre 1962 e 1966. Diz-se que o 25 de Abril apenas chegou a sério a Angola em Agosto, com a retirada de Silvério Marques e a nomeação de Rosa Coutinho para chefe de uma Junta Governativa Militar.
(54) Boletim do MFA, n.° 21, de 17 de Junho de 1975. 1145

1. Reconhecimento da República da Guiné-Bissau e do direito à autodeterminação e à independência para o seu povo e para o povo de Cabo Verde;
2. Reconhecimento dos mesmos direitos aos povos dos outros territórios portugueses em África.
O mesmo comunicado exigia ainda a cessação de todas as operações militares e "actos de agressão contra o povo", bem como o reagrupamento de todas as "forças de ocupação" nos seus postos de comando, como condições prévias para aceitação de um cessar fogo e para o inicio de "conversações" com o lado português (55), O exército colonial mostrava-se, todavia, com pouca vontade de procurar confrontos com as forças de guerrilha e de facto, no decurso do mês de Maio, à medida que se avizinhava o fim da estação seca, a luta militar efectivamente cessou. A nova administração militar em Bissau, nitidamente empenhada num corte com o passado colonial, parecia ansiosa em alcançar um acordo com o PAIGC, Alguns oficiais rebeldes pareciam, na verdade, simpatizar abertamente com os objectivos do movimento de libertação.
Talvez por isso, e provavelmente também devido às informações acerca da composição e do equilíbrio de poder dentro do novo regime de Lisboa, ou por pressões feitas por Senghor e por outros líderes africanos, ou muito simplesmente como um empreendimento táctico, o PAIGC anunciou, em 13 de Maio, que se encontrava pronto para entrar em negociações com os representantes portugueses, "com ou sem cessar fogo", tendo em vista "a libertação total do nosso povo" (56). Mário Soares, imediatamente após ter sido empossado no cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros do Primeiro Governo Provisório, em 16 de Maio, voou directamente para Dacar para efectuar conversações com Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, em resultado das quais se anunciou que negociações bilaterais teriam início em 25 de Maio, em Londres (57).

Da delegação portuguesa às conversações de Londres faziam parte Mário Soares e Jorge Campinos, ambos membros do Partido Socialista e bem conhecidos pela sua oposição às guerras coloniais e ao colonialismo, Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial, e Almeida Bruno, representante das forças armadas e confidente de Spínola. O encontro com a delegação do PAIGC foi cordial e amigável, um encontro simbólico entre aliados na luta contra a ditadura colonial. A identidade de pontos de vista, das duas partes, acrescida do conhecimento de que o cessar fogo se tornava uma realidade de facto no território da Guiné, fez aumentar a esperança de um rápido acordo. Mas as conversações foram interrompidas ao fim do primeiro dia. A delegação portuguesa, apesar da sua boa vontade, estava coarctada pelas declarações da Junta e pelo programa do Governo de Lisboa. Não tinha margem de manobra. O PAIGC, sentindo a força da sua posição, reiterou a fidelidade aos princípios expostos no seu comunicado de 6 de Maio.
Soares e Almeida Bruno regressaram a Lisboa para consultar o seu presidente.
Mas Spínola, tal como o PAIGC, sabia perfeitamente que as condições de um acordo na Guiné abririam um claro precedente para as restantes colónias, onde estavam em jogo interesses económicos vitais e o futuro de consideráveis comunidades de colonos, pelo

(55) Afonso Praça et al, 25 de Abril, Lisboa, 1974, pp. 61-62.
(56) Keesings Contemporary Archives, 1974, p. 26 747.
 (57) O Jornal de 25 de Abril de 1980.

que recusou qualquer espécie de concessão. Soares regressou sozinho a Londres (58). As conversações reiniciaram-se em 30 de Maio e voltaram novamente a ser abruptamente interrompidas.
No seguimento de novos contactos entre Soares e Senghor, em Paris, as conversações foram retomadas em 13 de Junho em Argel, sem que contudo se tivesse alcançado um acordo: o PAIGC insistia no pedido de reconhecimento da sua independência" os Portugueses insistiam na necessidade de um referendo. O PAIGC mostrava-se inflexível; por que razão haveriam de aceitar uma "consulta popular" sobre o futuro da Guiné, organizada pelos seus inimigos de outrora, quando já tinham eleito uma Assembleia Nacional, declarado a sua independência e sido reconhecidos como Estado soberano por 82 países? (59) Spínola enganava-se a si próprio ao pensar que seria possível manter a iniciativa na Guiné, quando, na verdade, há muito que esta pertencia ao PAIGC, Numa declaração feita à imprensa, em Argel, Soares disse claramente não acreditar haver qualquer esperança de progredir nas conversações enquanto não houvesse uma mudança no regime de Lisboa (60).
Spínola recusava-se a ceder. Na verdade, avaliava mal as forças políticas em presença. Tal como subestimava a maturidade política e a determinação do PAIGC, sobrevalorizava as suas próprias capacidades e calculava mal a força da sua posição, tanto na Guiné como em Portugal Incapaz de dominar o tigre que o 25 de Abril soltara, incapaz de conter a rápida desagregação das forças armadas no campo de combate e impossibilitado de contar com a lealdade daqueles em que tinha depositado confiança, Spínola sentiu de repente que o chão lhe fugia debaixo dos pés...

Na sequência do 25 de Abril, Spínola nomeara o tenente-corone! Carlos Fabião para o duplo cargo de encarregado do Governo (61) e comandante-chefe das forças armadas em Bissau Membro chave do staff de Spínola durante os anos de "sorrisos e sangue", conhecedor do país como ninguém, contando com um total de 12 anos de serviço militar na Guiné desde 1955, Fabião constituiu uma escolha esperada. No seu discurso de posse em Bissau, em 7 de Maio, elogiou "a figura e a obra do general Spínola na Guiné", dizendo que "a sua figura se projectou com a maior intensidade em todo o firmamento português, na sua verdadeira dimensão, na sua intocável verticalidade"(62).
Spínola, naturalmente, sentiu que podia depositar "confiança total" em Fabião e as instruções que lhe deu, antes do seu embarque para Bissau, "foram claras e concisas: pôr termo aos desmandos que ali se estavam praticando à sombra do 25 de Abril; negociar com o PAIGC, mas continuar o esforço defensivo de guerra até à assinatura do acordo de cessar fogo; dar continuidade ao processo político de autodeterminação ali iniciado no meu governo, já claramente apontado para uma consulta popular em termos

(58) Almeida Bruno foi substituído pelo major ManueS Monge - um outro spinolista -, que chegou a Londres após uma visita relâmpago a Bissau, onde relatou os progressos das conversações e se inteirou da situação militar (Expresso, de 1 e Junho de 1974).
 (59) Os delegados do PAIGC às conversações de Londres, chefiados por Pedro Pires, entraram no Reino Unido com passaportes da Guiné independente (Expresso de 1 de Junho de 1974). Diga-se, de passagem, que o PAÍGC não receava testar a sua popularidade num processo eleitoral ou num referendo: quando mais tarde o izeram em Cabo Verde, obtiveram 93% dos votos.
(60) Faz estranhamente lembrar a difícil situação em que Spínola se encontrou perante o Governo de Caetano e em 1972 .
(61) Fabião recusou o título de governador-geral.
(62) Citado em Neves, op. cit., p. 270. 1147

autenticamente democráticos; e preparar a minha visita à província com vista a assegurar o respeito total por decisões tomadas de acordo com a vontade das populações, habituadas, aliás, a manifestá-las nos 'congressos do povo'" (63).
Mas Spínola depositara mal a sua confiança e não seria a última vez que o faria (64). Os 20 000 cartazes com a sua fotografia enviados para Bissau e destinados à preparação da campanha para a "consulta popular" foram deixados por Fabião nos caixotes (65).
Spínola nunca chegou a fazer a visita que planeara... Denunciou, subsequentemente, a conduta de Fabião como uma "traição", mas parece, na verdade, que a "lealdade deste provara ser maior em relação à sua experiência na Guiné do que em relação ao general do monóculo" (66): as directrizes autoritárias de Spínola tornavam-se completamente ultrapassadas pela extraordinária rapidez e sentido do desenrolar dos acontecimentos naquele território.

À excepção de algumas zonas de fronteira, nas semanas que se seguiram ao golpe, e à medida que as notícias iam chegando às guarnições isoladas nas partes mais longínquas do território, os recontros entre as tropas portuguesas e o PAIGC começaram a abrandar. Ganhar uma equívoca condecoração por serem os últimos a morrer por uma causa sem esperança era coisa que pouco entusiasmava os Portugueses. Assim, em fins de Maio, princípios de Junho, e de uma forma aparentemente espontânea, assistiu-se ao início da troca de contactos entre o exército colonial e o da guerrilha. A iniciativa era normalmente tomada, embora nem sempre, pelos comandantes do PAIGC, que saíam do mato para conversações. Trocavam-se opiniões acerca da guerra e das negociações enquanto se bebiam uns copos e, à medida que a confiança e as amizades cresciam, os inimigos de ontem convidavam-se mutuamente para "jantares e convívios intermináveis" (67). Realizavam-se jogos de futebol entre equipas de ambos os lados. Retiraram-se as minas das estradas e concederam-se "salvos-condutos" que permitiam aos soldados portugueses sair dos seus aquartelamentos e visitar as aldeias vizinhas. Os camponeses entravam nos quartéis para comerciar. Em Cacine, os guerrilheiros projectaram para as tropas portuguesas um filme sobre os acontecimentos do 25 de Abril! (68) Os soldados tiravam fotografias de braço dado com os seus parceiros guerrilheiros. O processo de confraternização na Guiné foi de facto extraordinário e sem paralelo na história da descolonização ocidental em África (69). Foi um processo característico da capacidade portuguesa (nem sempre positiva!) para rapidamente esquecer ressentimentos ou desacordos e transformar o inimigo num amigo; foi também, incontestavelmente, um tributo a Amílcar Cabral, que tinha conduzido uma guerra sem ódio nem racismo, uma guerra contra a ditadura colonial, mas jamais contra o povo português - nem mesmo quando este se apresentava fardado...

(63) Spínola, op. cit., pp- 273-274. Spínola estava certo de que ganharia em qualquer plebiscito ou em qualquer outra forma de consulta organizada na Guiné (ver Rodrigues et al., op. cit., p. 243).
(64) Cometeu um erro semelhante ao mandar Otelo a Lusaka, quando das negociações com a FRELIMO, com o objectivo de "vigiar Soares".
(65) Soares, op. cit., p. 36.
(66) Kenneth Maxwell, "Portugal under Pressure", in New York Review of Books de 29 de Maio de 1975, p. 28.
(67) Soares, op. cit., p. 38.
(68) Boletim do MFA de 17 de Junho de 1975.
(69) Anote-se, contudo, que no Verão de 1974 se desenrolou um processo semelhante em Moçambique, 1148 embora numa escala provavelmente menos generalizada.
  
A confraternização neutralizou efectivamente as forças coloniais na Guiné. Entretanto, em Bissau, o MFA local trabalhou incansavelmente para promover a dinamização política das tropas, estender as suas raízes a todas as unidades militares no território, através de delegações eleitas democraticamente em cada quartel e compostas por oficiais do QP e do QC e ainda por sargentos e praças (70). A hierarquia tradicional, já seriamente comprometida pela conspiração contra o antigo regime e pelo golpe do 26 de Abril em Bissau (bem como pelo subsequente saneamento do comando militar), encontrava-se completamente marginalizada e destruída. O MFA criou, em substituição, as suas próprias estruturas de comando, no topo das quais se encontrava uma Comissão Coordenadora, um Secretariado e uma Assembleia Geral, representativa de todas as unidades e patentes. O programa do MFA foi divulgado na Guiné através da sua própria secção de informação naquele território (71). Com a cooperação de Fabião, o MFA apoderou-se firmemente do controlo das estruturas administrativas em Bissau Os grupos
"fantoches" FLING e MDG, "os traidores do povo", foram neutralizados.
A Emissora Regional abriu-se ao PAIGC, que assim conseguiu levar a cabo o seu trabalho político de uma forma aberta e sem entraves (72). Em certa altura, as forças de guerrilha chegaram mesmo a ser solicitadas na capital para pôr cobro à onda de criminalidade aí existente e em relação à qual o exército português se sentia incapaz de actuar por falta de "autoridade moral" (73).
O que aconteceu na Guiné foi um processo de simbiose entre o comando militar do MFA das forças coloniais portuguesas e o exército de guerrilha do PAIGC. A orientação e as acções radicais da vanguarda do MFA desencadearam uma profunda e compreensível reacção na massa dos militares que serviam na Guiné: tudo o que eles desejavam, no fim de contas, era regressar a casa; aliás, a mata da Guiné não era dos lugares mais agradáveis para se estar sem fazer nada, numa altura em que havia tanta incerteza e agitação em Portugal. O impasse das negociações de Londres e de Argel não foi claro,  muito bem acolhido por eles. É neste contexto que podem ser compreendidas na íntegra as notáveis conclusões da Assembleia do MFA realizada em Bissau em 1 de Julho: cerca de mil delegados e outros participantes reuniram-se para aprovar uma moção que terminava com cinco pontos:

1. Repudiar qualquer solução local e unilateral que não seja aceite pelo Governo Central de Portugal;
2. Exigir que, vencendo os obstáculos levantados pelas forças reaccionárias e neocolonialistas, o Governo Português, de acordo com as soluções pertinente da ONU, reconheça imediatamente e sem equívocos a República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação e independência dos povos de Cabo Verde, única política susceptível de conduzir à paz verdadeira;
3. Exigir que sejam imediatamente reatadas negociações com o PAIGC, não para negociar o direito à independência, mas tão-só os mecanismos conducentes a transferência de poderes;

(70) Em Portugal e nas restantes colónias, o MFA era ainda composto exclusivamente por oficiais de carreira.
(71) Para uma descrição detalhada da estrutura, organização e trabalho desenvolvido pelo MFA na Guiné veja-se o artigo publicado no Boletim do MFA, n.° 4, de 12 de Novembro de 1974.
(72) Compare-se, uma vez mais, com a situação existente em Angola, onde os movimentos de guerrilha ainda operavam, nesta mesma altura, num regime de semiclandestinidade.
(73) Entrevista em Setembro de 1980. 1149

4. Exigir que sejam desde já dadas por findas as comissões de todos os militares com 18 meses no mato e 21 meses em Bissau, processando-se a evacuação gradual dos restantes militares nos termos do acordo a celebrar com o PAIGC;
5. Apelar para que os militares portugueses encarem a sua presença actual e futura na Guiné como uma forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné, assim contribuindo para o pagamento da dívida histórica criada pelo colonialismo português (74).
O PAIGC, através dos seus contactos com o MFA e as autoridades em Bissau, tomou conhecimento imediato deste histórico documento. Na sequência do impasse das conversações ao nível oficial, em Argel, o movimento de libertação tinha prosseguido com aquilo a que chamava "conversas" no mato" com Fabião e representantes do MFA. Destas conversas encontrava-se arredado o problema do reconhecimento de jure da independência guineense, centrando-se as mesmas, exclusivamente, em questões práticas relativas à transferência do poder para o movimento de libertação: foi elaborado
um calendário para a retirada das forças coloniais e para a passagem da administração para o PAIGC, de forma que as zonas ainda não controladas por este não entrassem num caos após a salda dos Portugueses. A transferência das responsabilidades relativas à justiça e à ordem, transportes públicos, correios, fornecimentos de electricidade, distribuição de abastecimentos, etc, foi detalhada e meticulosamente planeada. Fabião limitou-se a criticar construtivamente as propostas que lhe eram apresentadas pelo PAIGC, tendo, deste modo, ambas as partes chegado a um acordo (oficioso) que iria, mais tarde, servir de base ao acordo oficial assinado em Argel; a retirada das forças portuguesas processou-se, pois, rapidamente e sem dificuldades.

O vertiginoso desenrolar dos acontecimentos na Guiné escapava completamente ao controlo de Spínola: de facto, este encontrava-se demasiado preocupado com os problemas mais imediatos em Lisboa, onde se tornava cada vez mais azeda a luta com a CCP do MFA, no tocante ao controlo das forças armadas, do Estado e, portanto, do próprio processo de descolonização.
Spínola tentava preservar a disciplina e a hierarquia militar tradicionais, fazer com que o Exército "regressasse aos quartéis", ao passo que o MFA lutava por conseguir um saneamento efectivo nos postos de comando, criar novas estruturas, assumir o papel de vanguarda dinamizadora dentro das forças armadas, de forma a alargar e a aprofundar a sua base de apoio.
Spínola esforçou-se por dissolver completamente o MFA e assumir o controlo incontestado do Estado; o MFA respondeu com firmeza a todos os seus ataques" bateu-se por lugares-chave e manteve o plano operacional de ura 25 de Abril "em rodas". Para Spínola, a revolução tinha terminado, para o MFA, mal começara.
Numa reunião realizada na Manutenção Militar, em 13 de Junho, Spínola pediu ao plenário do MFA um voto de confiança em si como condutor do processo de descolonização e intérprete dos objectivos constantes do programa do MFA, defendendo ao mesmo tempo que as forças armadas deveriam regressar aos quartéis75. A resposta do MFA foi equívoca, uma vez que se sentia demasiado fraco e vulnerável

(74) Reproduzida no Boletim do MFA de 17 de Junho de 1975. 1150 75 Rodrigues et ai, Portugal depois de Abril, Lisboa, 1976, pp. 34-35.

para se confrontar abertamente com Spínola (76). O pedido de Sá Carneiro para que fosse declarado o estado de sítio não obteve qualquer resposta. Estava-se num impasse. Mas a crise de autoridade e a eclosão de hostilidades abertas, que se sentia inevitavelmente iminente, podiam, quando muito, ser adiadas, mas não evitadas. Na opinião do primeiro-ministro, Palma Carlos (77), em Portugal "estava a caminhar-se para um clima de inteira irresponsabilidade e indisciplina"; havia confusão quanto à competência dos vários órgãos do Estado, faltava a autoridade ao Governo e o presidente não possuía um mandato claro que lhe permitisse assumir o controlo exclusivo do processo de descolonização:
Senhor Presidente, isto assim não pode continuar, é necessário que haja um presidente legitimamente eleito até para resolver o caso do ultramar.

Palma Carlos propôs por isso, que se organizassem imediatamente eleições para a presidência, através de sufrágio universal, que se promulgasse uma Constituição provisória, sujeita a ratificação por referendo, e, por último, que fossem alargados os poderes do primeiro-ministro, incluindo o de escolher os elementos do seu próprio governo. Em 8 de Julho, o Conselho de Estado, pressionado pela Comissão Coordenadora do MFA, rejeitou estas propostas (78), Em 9 de Julho, e não obstante os pedidos de Spínola, Palma Carlos demitiu-se.

Apesar da neutralidade que Spínola simulava, o certo ê que a consequência da crise representou uma importante derrota para si próprio" A sua escolha para substituir Palma Carlos como primeiro-ministro recaiu em Firmino Miguel, que declinou o lugar, pelo que se viu obrigado a aceitar o homem que o MFA lhe propunha: o coronel Vasco Gonçalves- O segundo Governo Provisório, empossado em 18 de Julho, incluía oito militares num conjunto de dezassete ministros (79) e revelou-se consideravelmente mais radicai que o antecedente. Esta vitória política do MFA viu-se ainda reforçada com a criação" em 12 de Julho, de urna força de segurança - o COPCON -~, nominalmente dependente de Costa Gomes, isto ê, do chefe do Estado-Maior, mas controlada, na realidade, pelo MFA - o braço militar" o "órgão operacional" da Comissão Coordenadora. O acentuado minar da posição de Spínola em Lisboa foi prontamente aproveitado pelo MFA. Imediatamente a seguir à crise desencadeada pela demissão de Palma Carlos eclodira em Luanda um sangrento motim racista e, a 22 de Julho, o governador-geral, Silvério Marques, um homem de escassos sentimentos democráticos, considerado um confidente de Spínola, recebeu ordens para regressar a Lisboa.  Dois dias mais tarde, Soares de Melo, governador-geral em Lourenço Marques, demitiu-se. Foram nomeadas juntas governativas, compostas exclusivamente por militares, para assumirem a administração de Angola e Moçambique. Em 24 de Julho, o Conselho de

(76) Segundo Rodrigues et al., 1976, op. cit., p, 34, nem todos os oficiais do MFA compareceram ao plenário da Manutenção Militar, com receio de que Spínola estivesse a engendrar um plano para os afastar na primeira ocasião.
(77) Palma Carlos era um conservador de venho estilo, que partilhava, em relação à questão do ultramar, a mesma opinião que o seu presidente. As citações aqui reproduzidas foram extraídas de uma entrevista sua publicada no Expresso em 22 de Abril de 1977.
(78) O aumento dos poderes do primeiro-ministro foi, na verdade, aceite.
(79) Com Vasco Gonçalves como primeiro-ministro e Melo Antunes e Vítor Alves como ministros sem pasta, a CCP do MFA viu assegurada a sua posição de controlo. 1151

Julho, o Conselho de Estado aprovou a nova lei constitucional, que, reafirmando os princípios primeiros contidos no programa do MFA (80), consagrava o reconhecimento, por parte de Portugal, do direito dos povos colonizados à autodeterminação, "com todas as suas consequências (8I). Spínola não estava em posição de se furtar a esta decisão: não teve outra alternativa senão a de assinar a lei e, em 27 de Julho, proferiu na televisão e na rádio a sua famosa declaração:
[...] é chegado o momento de reiterar solenemente o nosso reconhecimento dos direitos dos habitantes dos territórios ultramarinos de Portugal à autodeterminação, incluindo o reconhecimento imediato do seu direito à independência (82).
O "fim das guerras coloniais" foi festejado com grandes manifestações realizadas em Lisboa, Coimbra e Porto. A viabilidade do projecto federalista preconizado por Spínola ficava moralmente enfraquecida (83).
Em 2 de Agosto deslocou-se a Lisboa o secretário-geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim, para discutir com Spínola e com o Governo o processo de descolonização a ser adoptado nas colónias portuguesas. Deixou bem claro que, em relação à Guiné, Portugal não teria outra alternativa que não fosse a de entregar o poder ao PAIGC. Numa declaração feita em oito pontos nas Nações Unidas, em 4 de Agosto, Portugal anunciava estar pronto a reconhecer imediatamente a República da Guiné-Bissau como Estado independente e comprometia-se ainda a cooperar com as Nações Unidas para acelerar a descolonização nas ilhas de Cabo Verde (84).

Em 12 de Agosto, o Conselho de Segurança das Nações Unidas concordou unanimemente em recomendar à Assembleia Geral a aceitação da Guiné-Bissau como membro de pleno direito daquela organização. Os planos de Spínola relativos a uma "consulta popular" conducente à "autodeterminação" na Guiné estavam agora irremediavelmente ultrapassados: posto perante a completa desagregação da situação política e militar naquele território, sujeito a uma intensa pressão diplomática (85), embrenhado e distraído na luta pelo poder com o MFA, perante o rápido desenrolar do processo revolucionário em Portugal, apenas restava a Spínola aceitar o inevitável e tentar "salvar o possível no meio do impossível [...] o tempo de que dispúnhamos para negociar era curto e a situação interna era de fragilidade política e de anarquia militar, o que não permitia impor condições que sabíamos de antemão não virem a ser cumpridas"

(86). Em 26 de Agosto, Mário Soares e Pedro Pires assinaram em Argel o acordo que punha formalmente termo à administração portuguesa na Guiné e no qual se declarava que Portugal reconheceria de jure a existência daquela
(80) Redigido por Melo Antunes em Março e que contemplava o claro reconhecimento do direito dos povos colonizados à autodeterminação, emite uma atitude demasiado optimista em relação ao problema bem mais complexo da retirada em Angola, onde o movimento de libertação tinha uma implantação popular mais limitada, ao nível global do território, não possuindo uma estrutura com características permanentes de estado em desenvolvimento que preenchesse o vazio deixado pela descolonização.

(81) Lei n.° 7/74.
(82) Keesings Contemporary Archives, 1974, p. 26 747.
(83) Embora este mantivesse ainda esperanças de poder controlar o processo de descolonização em Angola e talvez em Moçambique
(84) Keesings, op. cit. Os restantes pontos da declaração referiam-se à descolonização dos outros territórios.
(85) Anote-se que muitos Estados africanos colocaram a questão do reconhecimento da Guiné como condição prévia para o estabelecimento ou para o reatamento de relações diplomáticas com Portugal. 1152 86 Spínola, op. cit.t p. 281.

República a partir de 10 de Setembro. O texto do acordo reafirmava e garantia ainda o direito das ilhas de Cabo Verde à autodeterminação e à independência (87). Dois dias mais tarde, o acordo de Argel foi ratificado, relutantemente, por Spínola, mas "consciente de que representava, no momento, a única solução possível" (88). O acordo de Argel representou uma vitória total para o PAIGC e mais um duro golpe no plano grandioso de Spínola relativo à formação de uma comunidade lusíada. As repercussões deste acordo fizeram-se imediatamente sentir na África meridional. Passados alguns dias sobre a ratificação do acordo de Argel, chegou-se a um acordo em Lusaka, após uns três meses de impasse nas negociações, para formação de um governo de transição em Lourenço Marques que conduziria Moçambique à independência, sob a chefia da Frelimo, em 25 de Julho de 1975. Sem uma experiência e conhecimento directos das condições existentes em Moçambique, Spínola viu-se, uma vez mais, sem grandes alternativas, e não teve outra saída senão a de ratificar o acordo, atendendo à deterioração do moral e da disciplina que se verificava nas forças armadas estacionadas naquele território. Como ele próprio previra, o resultado da luta na Guiné teria um tremendo impacte no processo global de descolonização:

O descalabro militar na Guiné modificou, assim, toda a possível estratégia política e criou um completo descontrolo nos sectores político-democráticos que desejavam uma descolonização negociada (89).
O PAIGC e os restantes movimentos de libertação eram, em sua opinião, "minorias de representatividade equívoca", catapultadas para o poder pela "traição" dos elementos "marxistas" do MFA e pela "prostituição" das forças armadas. Não é necessário compartilhar a opinião de Spínola sobre as capacidades políticas e militares dos movimentos de libertação, ou partilhar sequer a sua paranóica interpretação das motivações e actuações dos seus colegas militares para se compreender a realidade do enorme impacte do 25 de Abril no processo de aceleração conducente ao fim das longas lutas pela independência na Guiné, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e, mais tarde, em Angola também. A derrota do plano neocolonial de Spínola na Guiné, no seu "território natural", revestiu-se de um enorme significado: não só abriu um claro precedente para a natureza do tipo de descolonização a ser adaptado no resto do Império, como agudizou e forçou a rápida resolução das contradições do poder inerentes ao novo regime de Lisboa, fazendo avançar o processo revolucionário na metrópole e conduzindo, a breve trecho, à queda de Spínola e a uma mais profunda radicalização do Estado Português.

(87) A estratégia de Spínola fora a de afastar as ilhas do problema da Guiné durante as negociações para a independência. A informação disponível sobre a descolonização de Cabo Verde é limitada. Em 30 de Dezembro de 1974 foi formado um governo de transição que conduziu o arquipélago â independência total, sob a direcção do PAIGC, em.5 de Julho de 1975.
(88) Spínola, op. cit.,p. 285.
(89) Id., ibid., p. 282. 1153

John Woollacott* Análise Social, vol. xix (77-78-79), 1983-3.º, 4.º 5.º, 1131-
 A luta pela libertação nacional na Guiné-Bissau e a revolução em Portugal

Continua

(Vêr tambem Post neste Blog: http://foradolugaretempo.blogspot.com/2010/10/reuniao-governo-da-guine-paigc-julho.html

1 comentário:

Amilcar Ventura Ex. Furriel Mil da 1ª comp BCAV8323 disse...

A Minha Companhia na Guiné era a 1ªCcav do Bcav 8323 e logo na primeira semana de Maio 74, tivemos logo o primeiro encontro com o PAIGC perto de Amedalai que ficava a cinco kms de Bajocunda, não tenho a certeza mas acho que fomos os primeiros a ter encontros com o PAIGC.

UM ABRAÇO DO TAMANHO DA GUINÉ PARA VOCÊS.