INTRODUÇÃO
O 25 de Abril ergue-se como a principal linha divisória na formação do Portugal contemporâneo, e isto porque ele marca irreversivelmente o fim da presença colonial portuguesa em África, dá início à reorganização e modernização da vida económica civil e cria e estabiliza pela primeira vez no Pais, uma democracia política do tipo parlamentar burguês. O impulso para estas mudanças fundamentais, veio significativamente não tanto do interior do próprio Portugal, mas de África: as guerras coloniais em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, constituíram a causa principal do colapso final da ditadura salazarista, o agente catalisador das forças no interior da sociedade portuguesa, que estavam determinadas a retirar o País do longo período de isolamento nas águas estagnadas e semi feudais da periferia sul-ocidental da Europa.
No contexto desta perspectiva, defender-se-á especificamente neste artigo que foi a partir da Guiné - ironicamente, a colónia menos importante em termos económicos e estratégicos - que se desferiram os golpes fatais na ditadura colonial. Os extraordinários sucessos políticos, militares e diplomáticos da luta de libertação nacional empreendida pelo PAIGC, tinham colocado, já em 1973 o intransigente regime de Lisboa, num beco sem saída. A perspectiva de uma iminente e ignominiosa derrota provocou uma revolta
militar. As duas correntes de rebelião existentes no seio das forças armadas - a conservadora e neocolonialista, associada ao general Spínola, e a radical democrática e anticolonialista, que viria mais tarde a hegemonizar o MFA -, e que se uniram temporariamente em 25 de Abril de 1974 para tomar o poder, têm a sua origem em Bissau.
Durante a primeira fase do processo revolucionário desencadeado pelo golpe militar em Portugal, foi dominada pela questão da descolonização, o PAIGC voltou a desempenhar um papel crucial: primeiramente, ao definir o contexto do processo de descolonização, insistindo em que o novo Governo Português reconhecesse publicamente o direito dos povos colonizados à independência total, à autodeterminação forçando secundariamente, por essa via, a clarificação das concepções políticas e o equilíbrio do poder University of Manchester. 1131 no seio do novo regime de Lisboa e precipitando a luta subsequente entre elementos conservadores e radicais dentro das forças armadas pela direcção da revolução democrática na metrópole.
A descolonização da Guiné é talvez impar na história do colonialismo moderno. O fenómeno da confraternização entre guerrilheiros do PAIGC e os soldados das forças armadas portuguesas, a seguir ao 25 de Abril, e a tomada de posição dos oficiais do MFA em Bissau, a 1 de Julho de 1974, exigindo a transferência imediata do poder para o PAIGC, patenteiam tanto a enorme força moral e política das ideias de Amílcar Cabral como a natureza singular do processo português.
I. GUINÉ: O "CALCANHAR DE AQUILES" DA DITADURA
[...] Our peoples make a distinction between the fascist-colonial government and the people of Portugal: they are not fighting against the Portuguese people. However, the objective situation of the large popular masses in Portugal, oppressed and exploited by the ruling classes of their country, should make them understand the great advantages for them that will flow from the victory of the African peoples over Portuguese colonialism.
[...] While the fall of fascism in Portugal might not lead to the end of Portuguese colonialism - and this hypothesis has been put forward by some Portuguese opposition leaders - we are certain that the elimination of Portuguese colonialism will bring about the destruction of Portuguese fascism.
Through our liberation struggle we are making an effective contribution towards the defeat of Portuguese fascism and giving the Portuguese people the best possible proof of our solidarity [...] (Amílcar Cabral, Março de 1961, in Revolution in Guinea, Londres, 1974, pp. 15-16).
Em Portugal metropolitano a ditadura enfrentou crises sérias em várias ocasiões, mas nunca se lhe deparou uma oposição uniforme ou de base genuinamente popular. Se bem que Salazar nunca tenha sido muito popular, ele dispôs todavia, de uma certa e discreta aquiescência de uma resignação fatalista ao seu domínio, aparentemente interminável, sobre a vida política da Nação. Como notou um tanto amargamente Fernando Queiroga, o povo português no seu conjunto, enquanto "dominado pela mais cruciante miséria, duramente experimentado pelas medidas repressivas [...] não evidencia o mínimo espírito combativo e, bem pelo contrário, oferece o mais desolador aspecto de resignação" (l).
As fraquezas da oposição democrática em Portugal foram, por contraste, as verdadeiras forças dos movimentos de libertação nas colónias africanas. Enquanto o aparelho repressivo do regime ditatorial obtinha assinaláveis sucessos em relação às revoltas esporádicas de dissidentes urbanos na metrópole, a firmeza da rebelião armada dos elementos nacionalistas nas "províncias ultramarinas", que se apoiavam nas massas
(1) Queiroga , Portugal Oprimido -, Lisboa, 1975, pp. 91-92. Este livro é um relato da participação do autor 1132 na abortada Revolta da Mealhada, de 1946.
Camponesas de zonas rurais remotas muitas vezes inacessíveis, colocava a esse mesmo aparelho repressivo um problema bem maior. Apesar de raramente registarem vitórias decisivas, "a guerra da pulga" das forças de guerrilha conseguiu criar a confusão suficiente para exigir de Portugal o envio de cerca de 150 000 soldados para África e o dispêndio de algo como metade do orçamento estatal nessa colossal presença militar. Estes factos são bem conhecidos, como são aliás, as profundas repercussões deste desgastante empreendimento na política económica de um dos Estados mais pobres e menos desenvolvidos da Europa.
Embora se possa afirmar certeiramente que as guerras de libertação das colónias portuguesas africanas contribuíram decisivamente para a queda e eventual derrube da ditadura, deve notar-se que a luta não se desenvolveu de modo idêntico em todos os territórios. Em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe não existiam condições para iniciar uma luta armada. Em Angola, a "jóia" do Império lusitano, o movimento nacionalista encontrava-se em desvantagem - entre outros factores hostis - devido à existência de organizações rivais antagónicas e às sérias divisões internas e clivagens políticas.
Em Moçambique, a Frelimo enfrentava também conflitos internos e durante um largo período encontrava-se confinada à sua base do Norte, no Niassa e em Cabo Delgado, adjacente à fronteira com a Tanzânia; só em 1972, após ter repelido o "Nó Górdio" ofensivo português, lhe foi possível conduzir a guerra para sul e abrir novas frentes na Zambézia e em Tete ameaçando Cabora Bassa. Na Guiné contudo, o regime colonial encarava a perspectiva de uma derrota total e de um desastre completo em todas as frentes: militar, política e diplomática. Enquanto, em Angola, o aspecto militar nunca ultrapassou aquilo que era essencialmente uma guerra de desgaste, em Moçambique, a Frelimo disputava fortemente ao controlo português a maioria do território e, na Guiné, o PAIGC, tendo conseguido efectuar com êxito uma "inversão de forças" (2), iniciara, no período que precedeu o 25 de Abril, aquilo que Giap designara por fase final das guerras de libertação: uma contra-ofensiva generalizada (3).
Que razões se podem aduzir para explicar o extraordinário sucesso do PAIGC? Os factores históricos e geográficos foram certamente mais favoráveis ao desenvolvimento da luta de libertação na Guiné do que o foram em Angola ou em Moçambique: a maior parte do interior do país era inacessível aos Portugueses, fornecendo um excelente terreno para a guerra de guerrilha, e a independência da Guiné-Conakry (1958) e a do Senegal (1960) proporcionaram ao PAIGC um refúgio seguro a norte, a leste e a sul, bem como valiosas bases tanto para treino militar como pára fornecimentos de material
Bélico (4), emissões de propaganda, etc.
Graças à hostilidade do ambiente físico e do clima, à falta de recursos naturais e à prolongada resistência das populações indígenas à colonização(5), os Portugueses nunca conseguiram estabelecer um verdadeiro e extensivo domínio colonizador na Guiné, onde as contradições tribais e de classe eram, porventura, menos pronunciadas do que,
(2) Aquino de Bragança, Amílcar Cabral, Lisboa, 1976, p. 15.
(3) Vo Nguyen Giap, Peoples Army, Peoples War, Nova Iorque, 1965.
(4) Consistentemente fornecido pela URSS e pelos países socialistas.
(5) Entre 1889 e 1915, os Portugueses estiveram envolvidos numa quase permanente campanha de "pacificação"; a última revolta conhecida contra a colonização (antes das guerrilhas) foi a dos Bijagós, em 1936. Veja-se PAIGC, História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, Porto, 1974. 1133
por exemplo, em Angola. Todavia, a principal razão do sucesso do PAIGC deve imputar-se à qualidade da sua organização política e da sua liderança e, em particular, às extraordinárias capacidades do seu secretário-geral, Amílcar Cabral.
Fundado em Bissau, em 1956, o PAIGC apoiava-se no elemento assimilado e déclassé da população africana, A sua actividade política clandestina em Bissau desencadeou uma repressão violenta por parte das autoridades coloniais, obrigando o movimento a abandonar a área urbana em 1959-60 e a implantar-se no seio das massas camponesas (6)" Esta tarefa não foi de facto fácil. Antes de iniciarem quaisquer acções armadas contra o estado colonial (7), os militantes do PAIGC levaram cerca de três anos a investigar pacientemente as condições locais, concentrando o seu esforço junto dos grupos étnicos mais susceptíveis de apoiar e sustentar a rebelião, tirando-lhes paulatinamente dúvidas, angariando a sua simpatia e desenvolvendo uma forma de propaganda política que sintetizava, de facto, as razões de queixa do povo, em frases que eram tanto reais como imediatas. "Lembrem-se sempre", disse Cabral, "que o povo não combate por ideias, por coisas que apenas existem na cabeça dos indivíduos. O povo luta e aceita fazer os sacrifícios necessários. Mas fazem-no para obter vantagens materiais, para viver em paz e melhorar ias suas vidas, para sentir progresso e para poder garantir um futuro aos seus filhos." (8) Através de Cabral e dos quadros do PAIGC, as ideias revolucionárias implantaram-se na realidade guineense,
A luta armada na Guiné iniciou-se em 1963, tendo rapidamente alcançado algumas vitórias dotáveis. A batalha pelas ilhas Como, nos inícios de 1964 - provavelmente o acontecimento militar mais importante das guerras africanas -, representou um momento decisivo de grande alcance. Durante mais de três meses, o exército português lançou ataques sucessivos sobre as ilhas Como, na tentativa de se assegurar uma base estratégica, a partir da qual pudesse atacar a frente sul do PAIGC (9). Esta operação foi, todavia, um insucesso, constituindo um sério revés militar e psicológico para o colonialismo português e um enorme reforço para o moral e a determinação do PAIGC. Os efectivos do exército colonial na Guiné foram, subsequentemente, aumentados para um total de 30 000 homens - 30 000 homens armados para controlar uma população "nativa" que não ultrapassava o meio milhão.
Mesmo assim, o PAIGC encontrou-se em posição de anunciar em 1966 que controlava dois terços do território nacional e de declarar que a Guiné era "um Estado em desenvolvimento, estando um terço do seu território a ser objecto de uma agressão imperialista, semelhante à que se verifica no Sul do Vietname" (10).
Nas zonas libertadas do controlo da administração colonial, o PAIGC criou as suas próprias estruturas estatais, o embrião da futura república independente: um eficaz sistema de administração comunal e de justiça popular, o fornecimento, pela primeira
(6) Ver Cabral, "Brief Analysis of the Social Structure in Guinea", in Revolution in Guinea, Londres, 1974, pp. 46-60.
(7) Compare-se a acção precipitada pela UPA em Angola em 1961.
(8) Citado por Thomas Henriksen, "Peoples, War in Angola, Mozambique and Guinea-Bissau", in Journal of Modern African Studies, 14, 3, 1976, p. 381.
(9) Ver Basil Davidson, The Liberation of Guiné, Londres, 1969, p. 100. 1134
(10) Aquino de Bragança, op. cit., p. 15.
vez, de serviços de saúde e de ensino, a criação de uma rede de mercados e de distribuição dos produtos dos camponeses (11).
Deste modo" os habitantes das zonas libertadas "viram as suas vidas melhoradas". Compreendiam, de maneira clara, a razão de ser da sua luta, ainda que nunca tivessem visto um colono ou um soldado português.
Por esta razão, e apesar dos bombardeamentos e das atrocidades a que estavam sujeitos, encontravam-se dispostos a continuar a apoiar o movimento de revolta, a participar na sua própria libertação, a construir uma vida nova destituída das dificuldades e dos sofrimentos da guerra.
Os espectaculares sucessos da luta de libertação dirigida pelo PA1GC forçaram o colonialismo português a dar um passo audacioso na Guiné - um passo sem paralelo nas outras colónias, também em guerra, e nem mesmo em Portugal. À nomeação de António de Spínola, em 1968, para o cargo de governador-geral em Bissau representou um desenvolvimento qualitativo na luta. Spínola - ao contrário do seu antecessor, Arnaldo Schultz, e, virtualmente, de toda a hierarquia militar em Lisboa - reconheceu que existia um problema grave naquela pequena e inóspita "provinda" ocidental portuguesa: a guerra estaria quase militarmente perdida e a completa negligência das autoridades coloniais perante as necessidades e aspirações do povo sob a sua administração nominal tinham fornecido ao PAIGC um campo fértil de recrutamento e uma sólida base de apoio. A estratégia de Spínola, a única realista nas circunstâncias, foi dupla:
1) Reforçar o moral e a eficácia do exército colonial, na tentativa de
estabelecer um "equilíbrio militar" com as guerrilhas;
2) Lançar uma campanha que visava angariar a "simpatia e o empenhamento" do povo guineense, procurando enfrentar as suas principais carências, minando, por essa via, a base política do PAIGC.
A campanha Para Uma Guiné Melhor, gizada por Spínola, constituiu uma tentativa corajosa de liberalização política, de reforma social (l2) e de desenvolvimento económico, adquirindo uma dinâmica própria e que, no contexto do colonialismo congenitamente atrasado de Portugal, foi notável nos resultados alcançados. O novo governador saneou os comandos militares de Bissau, rodeou-se de ardentes e idealistas jovens oficiais, que se entregaram à tarefa de investigar as condições de vida do povo da Guiné e de apresentar projectos inovadores para as melhorar. Construíram-se escolas e iniciou-se uma campanha de alfabetização. Organizaram-se cooperativas agrícolas e colocou- se dinheiro à disposição de alguns camponeses agricultores- Efectuaram-se esforços no sentido de iniciar africanos na administração da colónia.
Iniciou-se uma forma de consulta popular através dos chamados "congressos do povo". Gastou-se dinheiro, numa escala sem precedentes, em trabalhos públicos (utilizando-se em grande maioria mão-de-obra militar) e num constante rodopio de cerimónias oficiais, festas carnavalescas, nas quais Spínola, rodeado da sua claque, se projectava como salvador paternal do povo guineense, como sincero "anti-imperalista"12 e
(11) Ver o relatório da comissão especial das Nações Unidas que em Abril de 1972 visitou as áreas controlados pelo PAIGC.
(12) Spínola descrevia o PAIGC como "agente do imperialismo soviético", o que estava longe de ser verdade, mas que era típico da sua cega paranóia anticomunista. 1135
instigador de uma verdadeira "revolução social" naquela pequena, empobrecida e insignificante terra...(13)
Entretanto, a guerra continuava e o recrutamento acelerado de soldados africanos elevou para 36 000 o número de homens armados ao serviço do estado colonial - cerca de um soldado por cada quinze habitantes!
O objectivo final da política de "sorrisos e sangue" de Spínola - pelo menos no que se refere à Guiné(14) - era o de forçar o PAIGC a negociar, para conseguir um honroso acordo político que evitasse a humilhação de uma derrota militar total. Acalentava o "sonho louco" (15) de chegar a um acordo com o PAIGC, o qual conduziria à incorporação do pessoal político e militar do movimento no existente aparelho de estado colonial - sob a sua benigna chefia, evidentemente, e tendo à sua direita Cabral, como um dos dois secretários-gerais. Por mais improvável que isto possa parecer, olhando retrospectivamente, estabeleceram-se contactos com o PAIGC, a partir de 1970, por intermédio (e por pressão?) de Leopold Senghor, do Senegal, e conseguiram-se importantes progressos no sentido de ambas as partes se encontrarem frente a frente, em Maio de 1972, com vista à discussão de um plano que contemplava a evolução gradual da Guiné para a "independência" num período de dez anos, no contexto de uma "comunidade luso-africana". Mas Spínola, tal como o PAIGC notara, não era um agente livre.
A sua nomeação para Bissau tinha coincidido com a morte política de Salazar e com os primeiros e optimistas meses de abertura política de Caetano em Lisboa, mas, por alturas de 1972, a posição de Caetano no seio da classe politicamente dominante enfraquecera bastante e os planos subtis de Spínola para uma "evolução na diversidade" dos territórios ultramarinos viram-se privados da aprovação por parte dos ultras da linha dura, cuja posição adquiria cada vez mais força. Caetano, provavelmente pressionado, deu instruções a Spínola para cortar todos os contactos com o PAIGC e disse-lhe:
Para a defesa global do ultramar é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho a outras negociações(16).
Quaisquer conversações directas com o PAIGC iriam reconhecer legitimidade ao movimento, coisa que a ditadura colonial sempre negara às organizações de guerrilha, e iria ter incalculáveis repercussões em Angola e Moçambique. Um contacto ulterior entre Spínola e o PAIGC, em Outubro, foi igualmente abortado pelo Governo (17). O colonialismo português, como Cabral salientara por diversas vezes, era incapaz de aceitar uma solução neocolonial. Spínola estava chocado; toda a sua iniciativa caíra por terra. A vantagem regressara ao PAIGC.
(13) A ironia deste slogan não passou despercebida a Amílcar Cabral: Como sabem, aplicando essa política que nós chamamos de sorriso e sangue, os colonialistas portugueses, pela voz do seu representante máximo na nossa terra, o general Spínola, afirmam agora que vão fazer uma revolução social na nossa terra. Claro que nós achamos que isso tem imensa piada e gostaríamos de ver o general Spínola e os outros chefes colonialistas fazerem uma revolução social em Portugal, ou, pelo menos, falarem de uma revolução social em Portugal. Mas sabem que a nova PIDE, que se chama DGS metê-los-ia a todos na cadeia. [Entrevista em 1971, reproduzida in Boletim Anti-Colonial, n.° 3, Dezembro de 1972.]
(14) Especulou-se que Spinola tencionava utilizar a Guiné como "trampolim" para o poder em Lisboa.
(15) Entrevista com um oficial da entourage de Spínola (Setembro, 1980).
(16) Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, 1974, p. 191.
(17) Spinola, País sem Rumo, 1978?, p. 41. Aparentemente, Amílcar Cabral propusera-se encontrar-se 1136 com Spínola em Bissau. Colocada entre a escolha de uma viragem política e uma "prolongada e inútil agonia"
(18), Lisboa escolheu a última. Mas por quanto tempo se poderia prolongar a agonia?
A seguir ao colapso das negociações, a situação militar na Guiné deteriorou-se numa "progressão geométrica"(19). O trágico assassinato de Amílcar Cabral, em Conakry, em Janeiro de 1973, poderia ter sido uma última e desesperada cartada de Spínola(20). Se tivesse sido, teria falhado. Depois de um curto período de confusa desorientação, o PAIGC ripostou com uma força maior que nunca durante a estação seca, de Março a Junho de 1973, infligindo baixas excepcionalmente pesadas ao exército colonial, forçando-o a recuar firmemente para uma posição defensiva. Os postos avançados militares portugueses encontravam-se isolados em território hostil, as cidades cercadas e sujeitas a ataques surpresa. Também no ar as forças portuguesas perderam vantagem, pois o PAIGC complementava a sua artilharia convencional antiaérea com disparos de mísseis terra-ar Stella - cujos efeitos eram devastadores(21).
E mais: preparavam-se ainda para utilizar caças Mig na luta pelo controlo do espaço aéreo da Guiné(22). A esperança de alcançar um "equilíbrio" militar era já nula - as forças coloniais, agora de costas voltadas para o mar, encontravam-se num processo de rápida desintegração...
Um dos últimos actos de Amílcar Cabral foi anunciar que se organizariam eleições para uma Assembleia Nacional Popular nas zonas libertadas, o que aconteceu de facto no Verão de 1973. Na sua sessão inaugural, em Medina do Boé, em 24 de Setembro, a Assembleia proclamou solenemente a independência da nova República da Guiné-Bissau, que em finais de Outubro já era reconhecida por cerca de 70 Estados soberanos. Em Novembro, as Nações Unidas, que tinham já reconhecido o PAIGC como "o único e autêntico representante do povo da Guiné"(23), convidaram Portugal a pôr termo à sua "ocupação ilegal" na República e a "retirar imediatamente as suas tropas". (24)
A derrota do colonialismo português na Guiné foi total - uma derrota em todas as frentes: militar, política e diplomática. Todas as iniciativas suplementares se apresentavam agora inviáveis no contexto do regime vigente
(18) Carta de Spínola a Caetano, datada de 28 de Maio de 1972 e reproduzida por Spínola, op. cit., p. 32.
(19) País sem Rumo, p. 36.
(20) Se bem que na altura se admitisse isto" não existem, na verdade, provas de que Spínola estivesse por detrás do assassinato. Acontecimentos subsequentes em Bissau (golpe anti cabo-verdiano de 14 de Novembro de 1980) sugerem que se possa ter tratado de uma conspiração predominamemente interna, motivada por questões de nacionalismo exclusivamente negro. A tentativa de golpe de Nito Alves, em Maio de 1977" em Luanda, demonstra a existência de um problema similar em Angola. É possível, ainda assim, que Spínola estivesse de certo modo envolvido, mas, se o esteve, foi provavelmente sem o conhecimento dos seus subordinados imediatos, muitos dos quais tinham, entretanto, adquirido uma sincera admiração e respeito por Cabral (entrevista, 1980.) em Lisboa.
(21) Ver Spínola, op. cit., p. 53. Ver também Bettencourt Rodrigues in Silvino Silvério Marques, A Vitória Traída, Braga e Lisboa, 1977, p. 127. Um documento clandestino intitulado A Situação Política e Militar na Guiné, e que circulou entre os oficiais milicianos antes do 25 de Abril, dizia que, na sequência do abate de uma série de jactos Fiat e de helicópteros pelo PAIGC, muitos pilotos se recusavam a voar em mais missões, mesmo que fosse para evacuar camaradas feridos, a menos que lhes fossem garantidas condições de segurança.
(22) Rodrigues, Borga e Cardoso, O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril, Lisboa, 1975, p. 254.
(23) Keesings Contemporary Archivest 1973, p. 26 088,
(24) Ibid., p. 26 196. 1137
O grande paradoxo" a grande ironia da situação era a de que, em termos estritamente económicos ou estratégicos, a Guiné se revestia de uma importância mínima para Portugal e para os seus parceiros da NATO(25). Era dispensável* E mais: os militares e o material bélico da Guiné podiam ter sido reempregues utilmente em Moçambique, onde a guerra se tomava cada vez mais acesa (26) Mas urna retirada militar - uma confissão de derrota infligida por alguém a quem os relatórios oficiais sempre tinham designado como um mero punhado de terroristas operando através da fronteira -- era impensável. O impacte no moral das forças armadas estacionadas nas outras colónias teria sido desastroso: uma derrota na Guiné teria desencadeado um efeito de "dominó" em todo o Império (27). Mas mais do que isso: qualquer forma de concessão política ou de "economia do pessoal militar" constituía um puro anátema para os ultras do regime, para quem Portugal seria sempre "uma nação indivisível, desde o Minho até Timor". Nenhuma amputação ou cisão seria consentida, fossem quais fossem as circunstâncias. Como dissera Salazar, "A Pátria não se discute, defende-se!".
Assim" os opressores - e não era a primeira vez (28) - enganavam-se a si mesmos com a sua própria propaganda, através da ideia que faziam da sua superioridade cultural (e de raça), incapazes de aceitar a hipótese de urna derrota vinda de um punhado de "comunistas negros", acantonados num pequeno atoleiro. Uma carta que Spínola dirigiu ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, em Maio de 1973, avisando-o da "contingência do colapso militar" (29) não obteve qualquer resposta. O aparelho de propaganda colonialista continuou com o mesmo disco, anestesiado pela sua própria mitologia.
Numa visita a Bissau, em 20 de Janeiro de 1974, o novo ministro do Ultramar, Rebelo de Sousa, declarou tranquilamente:
Notwithstanding the continued vigiíance and response to which we are obiiged in order to defend ourselves from the criminal raids which appear to have acquired rights of legitimacy in our present day world, life in Portuguese Guinea proceeds, at an accelerated pace" towards the goals of economic and social progress in view.
This is going on in a territory that is free from north ío south, and from east to west, amid the peaceful intermingling of the populationl...] (30).
(25) É curioso notar que algumas das mais violentas guerras de libertação colonial se deram em territórios de exíguo significado para a economia colonial; os mecanismos do imperialismo não são redutíveis a uma mera equação económica.
(26) Ameaçando" pela primeira vez, os principais centros populacionais, as áreas de desenvolvimento industriai e a produção agrícola em grande escala. Ver Siívério Marques, op- cit., p. 258.
(27) Na "Assembleia" fascista de Lisboa" o deputado pela Guiné, um tal Gardete Correia, colocou o problema nos seguintes termos: (...] o fulcro, a mola mestra de toda a guerra do ultramar assenta na Guiné Portuguesa e, unia vez perdida esta, Portuga! jamais poderá pensar em defender e manter as restantes províncias ultramarinas.
[Citado num artigo de Augusto de Carvalho no Expresso de 28 de Dezembro de 1974.]
(28) Compare-se, por exemplo, o enorme choque para os colonos brancos e para o Governo da Rodésia - e para o britânico! - quando o partido ZANU-PF, de Robert Mugabe, arrebatou uma esmagadora vitória nas eleições para a independência do Zimbabwe, em Fevereiro de 1980.
(29) Spínola, op. cit, p. 57.
(30) Citado em Horácio Caio, Portuguese Guinea 74: vigilance & response, Lisboa, s. d., p. 5 (tradução 1138 original).
Nos quartéis, os militares devem ter abanado a cabeça, não podendo acreditar no que ouviam... Em Março, a ofensiva do PAIGC recomeçou com uma intensidade ainda maior e começaram a circular rumores que diziam que as forças de guerrilha planeavam atacar a própria Bissau a 29 de Abril... (31)
John Woollacott* Análise Social, vol. xix (77-78-79), 1983-3.º, 4.º 5.º, 1131-
A luta pela libertação nacional na Guiné-Bissau e a revolução em Portugal
Continua
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3 comentários:
Ficaram os cartazes.
Os activistas que por diversas vezes se aliaram aos partidos ditos burgueses, estão perdidos em parte inserta, ou são hoje quadros dirigentes, subsecretários de estado, foram ou são ministros, tudo a bem da classe operária, estão hoje na sua grande maoria no bloco central, ou mesmo em Estrasburgo, depois de servirem cafés nas Lajes aos senhores do Mundo, quando estes resolveram basiados numa mentira atacar o Iraque e arrastar a Humanidade para mais uma perigosa aventura.
Caro Juvenal
Já me passou pela cabeça começar a fazer uma lista desses "revolucionários" para refrescar a memória da rapaziada.
A ver se arranjo tempo para chamar "os bois pelos nomes"...
Caro JSP
Era uma bela forma de combater o esquecimento.
Um abraço
Juvenal Amado
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