20 novembro 2010

Libertação da Guiné, Revolução em Portugal (II - IV)











                                                   II.  DE BISSAU PARA LISBOA


Quando as notícias sobre o golpe de Lisboa chegaram ao quartel-general do PAIGC em Conakry, foi um pandemónio: os militantes do Partido e os guerrilheiros riam-se, gritavam, abraçavam-se, pulavam - "Vês? Ganhámos! Destruímos o fascismo português [...] é graças a nós que o povo português é hoje livre!" (32) A euforia momentânea dos militantes do PAIGC traduzia a essência da realidade histórica: a Guiné era o frágil elo da cadeia colonial de Portugal e o regime de Lisboa não poderia sobreviver a uma derrota em África. A ditadura colonial fora incapaz de oferecer qualquer espécie de solução para o problema da Guiné. Presa numa teia de contradições criada pelos seus próprios mitos e ideologia, mostrara-se incapaz de tolerar qualquer espécie de concessão política. As forças armadas no terreno, desalentadas pela sabotagem do Governo no tocante aos seus esforços para alcançar, através de negociações, o fim da guerra com o PAIGC, conscientes de que a situação militar se deteriorava rapidamente e perseguidas pela lembrança de Goa (33), viram-se perante uma única alternativa: ou se transformavam no bode expiatório da débacle militar, que tinham tentado evitar a todo o custo, ou derrubavam o Governo. As raízes da insurreição militar que culminou no 25 de Abril tinham sido lançadas nos pântanos inóspitos e nas savanas da Guiné...

A história da revolta das forças armadas, a formação do Movimento dos Capitães e os acontecimentos que conduziam ao golpe foram relatados diversas vezes, pelo que não se justificaria voltar a repeti-los aqui (34). O que importa salientar é que foi na Guiné que aquela revolta foi concebida, inspirada e organizada. Não obstante poderem detectar-se, ao fim de treze anos de guerra, em todos os teatros de operações, sinais de desmoralização e de cansaço nas forças armadas, era na Guiné que esse sentimento se encontrava mais generalizado e se exprimia abertamente - especialmente após a quebra dos contactos com o PAIGC, em 1972. Os oficiais, tanto os do quadro permanente, como os do quadro complementar, começaram, pois, a reunir-se, quer na messe, quer a pretexto de um jogo de brídege, para discutir as suas condições e situações pessoais, as perspectivas da guerra, as razões da luta, os objectivos do PAIGC e as necessidades dos povos guineense e português.
Tais contactos e trocas de pontos de vista foram possíveis na Guiné porque Spínola fingia ignorá-los. Em Angola, Moçambique e até mesmo em Portugal, quaisquer dúvidas que os oficiais pudessem ter em relação ao esforço de guerra tinham de ser expressas de modo mais furtivo.

(31) Entrevista com ex-militares, publicada em Gazeta da Semana, n.° 4, de 22-28 de Abril de 1976.
(32) Jack Bourderie em Afrique-Asie, de 13 de Maio de 1974; citado no Expresso de 5 de Abril de 1975.
(33) Em Dezembro de 1961, cerca de 30 000 soldados indianos invadiram o enclave português de Goa; a pequena guarnição militar, seguindo as instruções do governador-geral, rendeu-se e foi, subsequentemente, caluniada e exposta ao vilipêndio público, por Salazar e pelas autoridades de Lisboa, pela sua "traição".
(34) 0 melhor relato continua a ser o de Rodrigues et al. (1975), op. cit. 1139
  
 Em Bissau, o próprio governador-geral criticava e ridicularizava o Governo e a sua política. A PIDE/DGS estava em má posição para esmagar o surto de dissidentes. os quartéis circulavam publicações clandestinas. Tramavam-se conspirações.
A petição denunciando os objectivos dos ultras no Congresso dos Combatentes, em Maio de 1973 - o primeiro sinal de revolta -, foi organizada por oficiais da Guiné. E, em Julho, a reacção dos militares na Guiné perante o "decreto Rebelo" não se limitava a queixas profissionais, encontrando-se antes claramente ligada aos problemas suscitados pela guerra (35).
O surto de rebelião militar na Guiné era manifestamente político: a participação nos programas de acção cívica patrocinados por Spínola e nas campanhas de acção psicologia por ele encenadas, a influência da propaganda do PAIGC e dos escritos de Cabral e a simples reflexão sobre a realidade guineense ajudaram a forjar uma consciência que ultrapassava a dos oficiais das restantes zonas onde também havia guerra. Já em 1972-73, alguns oficiais em serviço na Guiné haviam chegado à conclusão de que a única saída possível era a de um levantamento militar contra o Governo (36). Chegou mesmo a aventar-se a hipótese de se fazer o 25 de Abril em Bissau  (37). A situação militar na Guiné era, ao fim e ao cabo, muito má, e não há nada como a perspectiva de uma iminente e ignominiosa derrota para fazer convergir os espíritos e os corpos na acção...

A seguir ao regresso de Spínola a Lisboa, "por razões de saúde", em Agosto de 1973, o moral das forças armadas na Guiné decaiu vertiginosamente. Nessa altura, a presença portuguesa na maior parte do território era puramente nominal: as guarnições militares estavam sitiadas, rodeadas por minas, sujeitas a bombardeamentos de artilharia durante a noite e cada vez mais dependentes de precários abastecimentos aéreos. Nalgumas zonas conseguiram fazer-se acordos com os comandantes da guerrilha local no sentido de permitir aos Portugueses fazer saídas ocasionais dos seus aquartelamentos fortificados para arranjar alimentos, bebidas e remédios. Não era a coragem que lhes faltava, mas antes a disposição para se deixarem morrer ou ficar estropiados numa guerra que claramente se apresentava destituída de esperanças (38). E porque o haveriam de fazer? Em nome de decrépitos generais de gabinete que vegetavam lucrativamente nos seus gabinetes com ar condicionado em Lisboa? Espalhou-se então a ideia, entre os militares estacionados na Guiné, de que os seus verdadeiros inimigos não eram os guerrilheiros do mato, mas antes os políticos e os militares de alta patente instalados na metrópole. Se a honra do Exército não devia ser manchada pela derrota, impunha-se correr com eles. Mas como?
A estratégia apoiada por Spínola e pelos seus confidentes consistia na encenação de um golpe palaciano assegurando o controlo dos postos-chave no aparelho de Estado,

(35) Op. cit., pp. 255-257.
(36) Op. cit., p. 250.
(37) Expresso de 31 de Agosto de 1974.
(38) Deve notar-se que, nos finais da guerra, muitas unidades do exército português na Guiné eram comandadas por oficiais milicianos, cujo treino militar e experiência de combate eram limitados; a sua atitude geral perante a guerra pode ser descrita como a de uma cínica auto preservação. Os oficiais de carreira que tinham ficado na Guiné encontravam-se, na sua maior parte, em posições de comando em Bissau, ou à frente de companhias compostas por africanos (entrevista). Nos inícios de 1974, as companhias africanas representavam mais de 50% das forças efectivas do exército colonial (Silvério Marques, op. cit., p. 130) e eram utilizadas na maior parte das missões de combate; a sua vontade de continuar a ajudar a derramar o sangue dos seus irmãos de raça... era cada vez mais duvidosa (Rodrigues et al. op. cit., p. 254). O documento dos milicianos já citado 1140 referia-se às deserções de soldados africanos que se passavam com as suas armas para o lado do PAIGC.

afastando os opositores e reformando o regime a partir de dentro (39). Os meios de comunicação social, os Serviços de Censura e até mesmo a PIDE encontravam-se infiltrados (40). Os oficiais Spinolistas regressados da Guiné, após a sua comissão de serviço, começaram a "infiltrar-se" no comando de Lisboa e, em Janeiro de 1974, o próprio Spínola conseguiu a sua nomeação para o cargo de vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, então chefiado pelo general Costa Gomes. Todavia, o Governo não desconhecia os planos conspiratórios e agiu de molde a impedir que Spínola colocasse qualquer das suas "pedras" em posições chave.
Spínola nada podia fazer. Por outro lado, não possuía uma organização.
Compreendendo a ingenuidade das suas manobras, decidiu - mesmo antes da sua demissão, em Março de 1974 - compartilhar da sorte dos capitães que estavam, por essa altura, decididos a depor o Governo através de um levantamento militar (41). A estratégia legalista de Spínola foi abandonada:
"Vamos desistir disso", disse ele a um oficial, "e vamos aos tiros." (42)

O 25 de Abril representa a confluência de duas correntes de dissidência dentro das forças armadas - uma associada a Spínola e a outra ao Movimento dos Capitães -, mas ambas mergulham as suas raízes em Bissau.
A necessidade de impor uma solução que fosse política, e não militar, para o problema das guerras coloniais reuniu-os para derrubar um regime ditatorial que oprimira o povo português durante cinquenta anos. Mas que tipo de solução política? Nos meses que precederam o golpe, a linha de divergência entre estas duas "correntes" apresentava-se, por vezes, obscura e mal definida, girando, a maior parte das vezes, em torno de questões tácticas e do modo de derrubar o antigo regime. Mas essa linha existia realmente, chegando mesmo a revelar-se na luta pelo controlo político e militar das comissões encarregues de preparar o levantamento, nas recriminações relativas à responsabilidade pelo levantamento das Caldas, em Março, e, por último, de um modo mais notório, no desacordo relativo ao texto do programa político do MFA, que iria constituir como que uma pedra de toque para o novo regime.
A reputação pessoal de Spínola era tal, que conseguiu ver aprovadas as alterações que propusera para o programa e, à última hora, depois de receber a rendição de Caetano, no Quartel do Carmo, os capitães pediram-lhe que chefiasse a nova Junta Militar - a Junta de Salvação Militar. A Junta, os órgãos do Estado e até o próprio MFA eram dominados pelos spinolistas.
O novo presidente, na sua alocução à Nação às primeiras horas da manhã do dia 26 de Abril, falou, ominosamente, em "garantir a sobrevivência da Nação soberana na sua integridade pluricontinental". Existiam, na realidade, escassos motivos para optimismo entre os chefes das guerrilhas nas colónias. Suceder-se-ia um "colonialismo de fachada democrática"?
Assim, as guerras prosseguiam, e foram precisamente a questão relativa ao modo de se encontrar um fim honroso para as mesmas, a questão da natureza da solução política e a

(39) A estratégia fora inicialmente concebida em 1972, quando Spínola havia sido convidado por Sá Carneiro e pela "oposição leal" para se apresentar como candidato da ANP contra Tomás nas eleições presidenciais de Outubro. Spínola, com a colaboração de Mareio ou não, poderia então levar a cabo uma purga no Governo e nos comandos militares. Na circunstância, Spínola não aceitou. O plano era uma reminiscência do pensamento que norteara a campanha eleitoral de Delgado em 1958 ("Obviamente, demito-o").
(40) Rodrigues et ai, op. c/V., p. 259.
(41) Discutido pela primeira vez, no encontro de Óbidos, em 10 de Dezembro de 1973, mas apenas acordado em Cascais, em 5 de Março de 1974.
(42) Entrevista com um oficial em Abril de 1981. 1141

questão da descolonização que fizeram com que se manifestassem e clarificassem as divergências que se manifestassem e clarificassem as divergências entre Spínola e os oficiais do MFA ligados à Comissão Política do Movimento (que mais tarde daria origem à Comissão Coordenadora do Programa do MFA). Estas diferenças polarizaram-se em tomo de duas opções distintas: uma delas defendia uma solução neocolonial para os territórios africanos, a formação de um estado federal que permitisse aos mesmos uma evolução gradual para a "autonomia" administrativa no quadro de uma comunidade luso-africana; a outra advogava o reconhecimento inequívoco do direito dos povos colonizados à independência total e a entrega directa do poder aos movimentos de libertação, sob cuja direcção se processara a luta anticolonial. A questão colonial, que antes do 25 de Abril unira os militares rebeldes, tornou-se, deste modo, após a tomada do poder, o ponto fundamental e explosivo da divisão e clivagem no novo regime.

O projecto de Spínola, desenvolvido a partir da teoria e da prática do seu governo na Guiné, preconizava a criação de uma comunidade lusíada, uma federação de estados semi-autónomos unidos por uma língua comum e por interesses económicos "complementares"(43). Era um projecto apoiado pelos principais grupos monopolistas portugueses (Melo, Champalimaud, etc), por multinacionais que operavam em Angola e Moçambique, pelos Estados Unidos (44) e ainda pela maioria dos governos ocidentais. Mas o próprio Spínola estava consciente de que era já, provavelmente, tarde (45): a incapacidade de o regime colonial fornecer oportunidades, ainda que limitadas, para o progresso social ou conceder a duvidosa vantagem da cidadania portuguesa ao que não passava de um irrisório punhado de africanos assimilados destruiu fatalmente a possibilidade de uma solução neocolonial bem sucedida para o problema do ultramar. Spínola percebeu que a única esperança de evitar o reconhecimento total da independência sob a égide dos movimentos de guerrilha consistia em tentar atrasar ao máximo o processo de descolonização, de forma a dar tempo a que se criassem e organizassem forças políticas fora da órbita das organizações de libertação, a que se preparassem quadros africanos para assumir a gestão da indústria e do Governo e a que se criasse um programa de investimento acelerado e de desenvolvimento económico que lançasse as bases sociais para a preservação da dependência e exploração colonial através de uma nova fachada negra. Segundo os argumentos de Spínola, os povos africanos eram ainda politicamente imaturos e não estavam preparados para assumir a independência completa; Portugal, como sempre, conduzi-los-ia, benignamente, a uma forma gradual de autogoverno no quadro de uma comunidade luso-afro-brasileira, na qual os direitos de propriedade dos colonos e os interesses capitalistas seriam devidamente protegidos. Com este objectivo, Spínola propôs, em nome do regime de Lisboa, que se realizassem referendos nos territórios coloniais, de forma a saber se as pessoas queriam preservar os seus laços com a metrópole, tornando-se membros da comunidade lusíada, ou não. Permitir-se-ia, no período anterior aos referendos, a expressão de todas as opiniões políticas, devendo, todavia, a livre participação dos movimentos de guerrilha obedecer a um requisito prévio, o de abandonar a luta armada.
(43) Para um relato detalhado das ideias de Spínola - que representavam a alternativa -, preferida para os capitais portugueses e estrangeiros, veja-se o seu celebro livro Portugal e o Futuro, Lisboa, 1974.
(44) Expresso por Nixon num encontro tido com Spínola nos Açores em 19 de Junho de 1974.
(45) Spínola, País sem Rumo, p. 250. "Um atraso de mais de treze anos", segundo Melo Antunes em 1142entrevista publicada no jornal Expresso de 17 de Fevereiro de 1979.

A consecução do cessar fogo tornou-se, deste modo" um dos objectivos principais de Spínola e de todos os interessados que - tanto dentro como fora do País - apostaram nele.
A reacção imediata dos movimentos de libertação a estas propostas foi negativa: a luta armada prosseguiria até que Portugal reconhecesse o direito inalienável dos povos colonizados à independência total e o direito de determinarem o seu próprio destino. Rejeitaram a ideia de que Portugal, a potência colonial, pudesse conduzir o processo de descolonização que eles próprios tinham desencadeado. Além disso, as propostas de Spínola nem sequer ofereciam uma base viável de negociação: eram vagas, equívocas e destituídas de quaisquer garantias (46). Qual seria a duração do processo de evolução para o "autogoverno"? O que é que isto significava concretamente? Quando se realizariam os referendos? Quem fiscalizaria a votação? Quem poderia votar? E que garantias seriam dadas aos guerrilheiros que concordassem em depor as armas e respeitar o cessar fogo? Desmobilizariam também o exército colonial, confinando-o aos quartéis? Ou seria que os referendos se iriam realizar sob a ponta das armas das forças de ocupação e sob os olhares atentos da polícia secreta? Que acesso teriam os movimentos de libertação aos meios de comunicação social controlados pelo estado colonial e pelos interesses dos colonos? Por que razão haveriam os movimentos cuja legitimidade fora conquistada nos campos de batalha, através de uma luta revolucionária, de participar num processo eleitoral organizado pelos seus antigos opressores e senhores, fazendo uma campanha lado a lado com grupos "fantoches" sem representatividade, formados à pressa e cuja contribuição na luta pela independência fora nula?

Em 2 de Maio, Agostinho Neto declarou:
Rejeitamos as conclusões do general Spínola. Nenhum movimento de libertação poderá alguma vez aceitar o projecto de federação dos territórios africanos com Portugal. Fomos colonizados desde 1482 e isso chega.
Queremos a nossa independência completa. A nossa esperança reside no Povo Português, que, depois de ter sofrido durante mais de quarenta anos, deve obrigar a Junta a uma atitude democrática e realista. Combatemos o sistema, mas não lutamos contra o Povo Português (47).
As esperanças de Neto não eram infundadas. É importante salientar que o projecto de Spínola para as colónias se encontrava extremamente dependente tanto da manutenção do moral e da disciplina nas forças armadas, como da ordem e da estabilidade na metrópole. Foi com um certo alívio que Caetano se rendeu a Spínola, no Quartel do Carmo" em 25 de Abril, pois tinha a convicção de que este não era homem para abandonar o ultramar e que seria capaz de evitar que em Portugal o "poder caísse na rua". Mas, até mesmo Spínola, apesar da sua enorme popularidade e da força aparente da sua posição inicial dentro do novo regime, foi incapaz de impedir que tal acontecesse. O povo português, intimidado e oprimido durante tantos anos, saiu para as ruas com júbilo e espírito de desforra assim que a oportunidade de mudança se lhe deparou. A válvula de compressão fora retirada. Na própria tarde de 25 de Abril, o golpe deu origem a uma revolução, a uma explosão. Comparem-se os detalhes tortuosos e intrincados do acordo final, assinado na Lancaster House, em Londres, e relativo à independência do Zimbabwe (Dezembro de 1980).

 (47) Citando em Orlando Neves (org.), Diário de Uma Revolução, vol. I, Lisboa, 1978, p. 258. 1143

Explosão popular que radicalizou profundamente a natureza e o alcance da transformação política que se seguiu em Portugal, que pôs em causa totalmente as bases da sociedade capitalista autoritária criada por Salazar, desestabilizando por completo o Estado Português. As propostas do novo Governo para uma reforma social moderada e uma renovação política (48) - à semelhança das propostas para uma evolução gradual nas colónias - assumiam um carácter demasiado insignificante para um povo que esperara tanto tempo e que exigia lhe fossem concedidos imediatamente salários e condições adequados, além de direitos democráticos. A situação tornou-se, deste modo, cada vez mais instável: "Enfim, estava criada uma situação anárquica de ausência de lei e de carência de autoridade em que cada um ditava a sua própria lei." (49) Spínola estava confuso, incapaz de dedicar a necessária atenção à implementação dos seus planos para África, dispondo de uma insuficiente experiência política e de um escasso apoio organizado para travar uma batalha em quatro frentes. Deste modo, o movimento popular e revolucionário em Portugal, ao lutar pelos seus próprios objectivos, contribuiu decisivamente para a luta de independência das colónias africanas - luta essa que, por sua vez, havia tornado possível, antes de qualquer outro factor, o desenvolvimento daquele movimento.

O núcleo político do MFA, ao realizar o golpe de 25 de Abril em nome do povo, foi-se identificando com os objectivos do movimento popular, radicalizando-se cada vez mais. A aliança com Spínola tinha sido uma questão de convergência táctica, um fenómeno puramente conjuntural, que dificilmente escondia a absoluta e irremediável contradição existente entre os objectivos políticos, as opções e as forças de classe que representavam ou que passaram a representar. As concordâncias relativas à necessidade de uma solução política para as guerras, de afastar o Governo do poder, de forma a possibilitar um acordo em África, de governar com consenso do povo (50) e de elaborar um programa de reforma favorável aos grupos socialmente desprivilegiados constituíram pontos de contacto superficiais que encobriram todas as divergências de interpretações conflituosas tocantes à natureza destas mudanças e ao modo de as pôr em prática. No período que se seguiu ao 25 de Abril, estes conflitos, que até aí tinham permanecido ocultos, irromperam de um modo implacável. Enquanto a descolonização permaneceu como questão de fundo, o MFA chocou-se também frontalmente com Spínola sobre a amplitude que deveriam atingir os saneamentos dos apoiantes do antigo regime, nas forças armadas e no aparelho de Estado, e sobre a natureza do regime democrático que deveria substituir as defuntas estruturas do Estado Novo. A maioria dos activos oficiais do MFA (incluindo alguns anteriormente tidos como spinolistas) sentiam-se descontentes com as ideias de Spínola relativas a uma forma de governo estritamente controlada e excessivamente autoritária, não confiavam nos seus aliados políticos (51)
  
(48) Veja-se o programa do Primeiro Governo Provisório (Decreto-Lei n.° 203/74, de 15 de Maio).
(49) Spínola, op. cit., p. 189.
(50) A afirmação de Spínola na Guiné teve grande influência: [...] não há outra maneira de resolver os problemas nem de governar os povos senão a democracia. [Citado por Reis, op. cit., p. 261.]
(51) Principalmente os que formavam a "oposição leal" na Assembleia no período da abertura de Marcelo Caetano e que agora se congregavam em torno do PPD de Sá Carneiro. E Spínola viria, mais tarde, a juntar-se 1144 a gente muito mais duvidosa e desonrosa...

e encontravam-se profundamente ressentidos com os seus modos arbitrários e despóticos (52). Mas, mais do que isso, a maioria acreditava sinceramente que seria impossível implantar um regime democrático em Portugal enquanto se mantivesse qualquer espécie de relação colonial com África: "Uma nação jamais poderá ser livre enquanto escravizar outra" tornou-se o seu lema político. A luta pela descolonização e pela democratização avançou paralelamente, aliando-se o próprio MFA objectivamente às organizações de libertação africanas e ao movimento popular em Portugal, em confronto total com Spínola e com os seus aliados reaccionários e imperialistas. Qualquer vitória alcançada por um dos lados numa das frentes de luta tinha repercussões imediatas para outro.
Assim, o destino da revolução democrática em Portugal e o avanço das revoluções nacionais em África tornaram-se intrincadamente entrelaçados... e foi a situação na Guiné que definiu uma linha clara entre as duas interpretações divergentes do 25 de Abril, a Guiné onde os sonhos messiânicos de Spínola à medida que o exército colonial se desintegrava, foram, uma vez mais, esmagados sem qualquer cerimónia.

John Woollacott* Análise Social, vol. xix (77-78-79), 1983-3.º, 4.º 5.º, 1131-
 A luta pela libertação nacional na Guiné-Bissau e a revolução em Portugal

Continua

Sem comentários: