19 outubro 2010

Oposição à Guerra Colonial

As esquerdas e a oposição à guerra colonial
(versão parcial com a devida vénia pela reprodução)
Rui Bebiano
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais
Este texto reproduz apenas parte de uma primeira versão do artigo “As Esquerdas e a Oposição à Guerra Colonial”, redigido em 2001 e publicado integralmente em A Guerra do Ultramar: Realidade e Ficção. Actas do II Congresso sobre a Guerra Colonial, Lisboa, Editorial Notícias – Universidade Aberta, 2002.
(...)


A atitude da generalidade da oposição não comunista não era, ou não foi durante bastante tempo, tão inequívoca. Para este heteróclito sector anti-salazarista, algumas vezes com expectativas ainda em relação a uma possível evolução democrática do próprio regime, a questão colonial aparecia de facto como um problema incómodo. Os sobreviventes da ilegalizada Aliança Republicano-Socialista e os seus próximos, oriundos dos movimentos conspirativos construídos a partir das campanhas presidenciais de Norton de Matos e principalmente de Humberto Delgado, não se sentiam com perspectiva ou coragem política para admitirem abertamente o abandono puro e simples dos territórios coloniais, apesar do general ter participado em Casablanca, em finais de 61, numa reunião da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), após a qual fez algumas declarações favoráveis à autodeterminação(1). Assim se compreende o motivo pelo qual os panfletos, assinados por Henrique Galvão e lançados aos milhares sobre Lisboa em 10 de Novembro de 1961, aquando do desvio do Super-Constellation que fazia a carreira Casablanca-Lisboa, mencionavam apenas “a economia nacional e ultramarina esfrangalhada, a desonra nas colónias, o sacrifício da nossa juventude numa guerra sem fim”(2). Nada mais do que isso: nem uma palavra ou sugestão sobre a concessão da independência, ou sequer de uma qualquer forma de autonomia mitigada, aos territórios coloniais.
Os socialistas, continuadores dos antigos republicanos como alternativa à crescente preponderância dos comunistas nas fileiras anti-regime, mostrar-se-iam um pouco mais ousados, mantendo porém alguma hesitação a respeito da forma de tratar o assunto. 

 1 Veja-se Dawn Linda Raby, “A oposição no exílio e a guerra colonial”, Vértice, no. 58, II série, Janeiro-Fevereiro de 1964, pp. 37-40.
2 Henrique Galvão, proclamação da Frente Antitotalitária dos Portugueses Livres no Estrangeiro, Novembro de 1961. Veja-se Paulo Moura, “Radiografia de um golpe de charme”, Pública, no. 283, 28 de Outubro de 2001, pp. 16-28.

Entre as naturais pressões dos meios ligados à Internacional Socialista, favoráveis – como acontecia expressamente com destacadas figuras da organização como Willy Brandt e sobretudo Olof Palme – a um apoio manifesto e activo aos movimentos de libertação e à concessão das independências, e os temores de parte da sua base social de apoio em relação às consequências dessa perda, as posições, embora heterogéneas, mantinham-se vacilantes. Desta forma, percebe-se que os números do jornal Portugal Socialista falassem muito pouco da guerra, por comparação com o dramático impacte que esta vinha tendo no quotidiano dos portugueses e na cena internacional, evitando mesmo avançar com qualquer proposta que visasse combatê-la directamente dentro do país. Condena-se assim “a guerra injusta e sem saída para que o governo de Salazar arrastou Portugal, incluindo aquela parte do povo que labuta dignamente nas colónias”(3), ou adiantam-se cenários futuros, defendendo-se “um Portugal moderno e reeuropeizado”, que “em nada afectaria a existência de uma comunidade Luso-Brasileira, na qual caberiam ainda os futuros Estados nascidos, por auto-determinação, das colónias portuguesas”(4). Sob este aspecto, aliás, a proposta mais elaborada que durante anos figuraránesta publicação será a apresentada por Francisco Ramos das Costa. Contestando a guerra e propondo uma solução de paz, insistirá cuidadosamente em não vincular as posições dos socialistas a qualquer dos movimentos de guerrilha anti-colonialista que se encontravam lançados no terreno, procurando salvaguardar, no processo de descolonização que pensa vir a ser possível no futuro, quer a eclosão de “uma situação caótica e anárquica”, perturbadora do funcionamento dos novos Estados a criar, quer “a readaptação social dos trabalhadores e empresários estabelecidos nas actuais colónias”(5). De resto, sublinham-se habitualmente, tanto no jornal como em diversos comunicados, aspectos como o isolamento internacional de Portugal e os custos financeiros das iniciativas militares, excluindo-se sempre qualquer menção à organização de uma campanha interna que pudesse contestar a sua existência ou que, pelo menos parcialmente, as pudesse bloquear.
Posição igualmente hesitante será a evidenciada pelos II e III Congressos da Oposição Democrática, realizados legalmente em Aveiro, já no contexto da ténue abertura marcelista e depois do seu retrocesso, entre os anos de 1969 e de 1973. O primeiro será praticamente omisso em relação ao tema, na sequência, aliás, da “Plataforma de acção comum da Oposição Democrática”, resultante de uma reunião preparatória do Congresso ocorrida a 15 de Junho em S. Pedro de Muel, e na qual apenas no item 25 se pedia a “resolução pacífica das guerras do Ultramar, na base do reconhecimento dos direitos dos povos à autodeterminação, precedida de um amplo debate nacional”(6).

3 “Rumo ao futuro”, Portugal Socialista, no. 2, Junho de 1967, p.1.
4 Z. Almeida, “Onde é que nós portugueses vamos construir o nosso futuro: na Europa ou na África?”, Portugal Socialista, no. 4, Setembro de 1967. p. 6. O artigo continuará no número seguinte.
5 Francisco Ramos da Costa, “A descolonização portuguesa”, Portugal Socialista, no. 12, Maio de 1968, pp. 5 e 7.

No Congresso de 73, todavia, notamos alguma preocupação com o assunto por parte de diversos participantes, sobretudo no que se refere aos sectores mais próximos dos comunistas. Porém, apesar de alguns dos congressistas terem apresentado propostas(7), nas conclusões verifica-se a ausência de uma tomada de posição clara sobre a guerra. Lendo a edição impressa destas conclusões, verifica-se que, num total de 155 páginas, apenas em uma delas, de forma breve e já quase no termo do volume, aparece referida a urgência em “empreender uma larga campanha sobre as consequências da guerra colonial (...), o desenvolvimento de uma ampla campanha nacional exigindo o fim da guerra e a abertura imediata de negociações (...), a denúncia dos crimes de guerra cometidos peloexército colonial”(8).
Contrariamente, alguns sectores activistas católicos parecem evidenciar um crescente empenho na mobilização de vontades contra a guerra. Do impacte da encíclica Pacem in Terris, proclamada por João XXIII em Abril de 1963, dos debates e resoluções do concílio Vaticano II, concluído já em Dezembro de 1965, e da política de ggiornamento da Igreja protagonizada por Paulo VI, que abandonara a antiga pompa vaticana e iniciara a prática diplomática das viagens papais, havia brotado algum estímulo à procura de soluções pacíficas e consensuais para os conflitos coloniais que ainda se encontravam por resolver. A atitude tomada pelo papa em 1970, ao receber em audiência, para escândalo do governo e de alguns sectores católicos portugueses mais conservadores, os representantes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, não pode ter deixado de causar profunda impressão aqueles que, dentro deste campo, duvidavam já da justeza das posições do governo. Por sua vez, os ecos da “teologia da libertação”, que colocava, já então com alguma projecção política e mediática, questões a respeito das desigualdades sociais e mundiais, da compreensão das mesmas em termos teológicos e da necessidade prática de uma acção orientada para o seu gradual desaparecimento, não deixavam de se fazer ouvir.
É conhecida a posição silenciosa e pactuante da quase totalidade da hierarquia da igreja católica portuguesa metropolitana em relação à continuidade da guerra e mesmo aos excessos e mais atrozes consequências desta. Contam-se poucos casos de resistência pública, explícita, a esta posição, como aconteceu com as dissensões dos padres “contestatários” José da Felicidade Alves e Mário de Oliveira. Mais subterrânea, no entanto, parece ter sido a maturação de uma reflexão colectiva acerca do assunto – isto é, da temática da paz, o que significava

6 Transcrito do no. 5, de Março de 1970, da publicação clandestina Cadernos Necessários.
7 Foi, entre outros, o caso de José Medeiros Ferreira e de Joaquim Velez Colaço, que nas suas
intervenções chegaram a sugerir a formação de uma “zona económica e política europeia e africana”
(MF) ou de uma “comunidade de Estados independentes” (JVC). Cf. III Congresso da Oposição
Democrática. Teses (8ª Secção), Lisboa, 1974, pp. 11-22 e 185-197.
8 III Congresso da Oposição Democrática. Conclusões, Lisboa, 1973, p. 142.

naturalmente uma abordagem da guerra – por parte de alguns sectores. O grupo próximo da democracia-cristã constituído à volta da revista O Tempo e o Modo, o movimento PRAGMA – Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária (criado em 64 e encerrado pela PIDE três anos depois), o grupo de sacerdotes da “Tribuna Livre”, os Grupos de Estudo, Documentação, Intercâmbio e Experiências, editores dos Cadernos GEDOC, os núcleos que publicaram o Direito à Informação e o Boletim Anti-Colonial, integraram, de uma forma ou de outra, essa mobilização de consciências. Torna-se pois evidente que a condenação da guerra, afirmada, entre outros momentos, nas celebrações do Dia Mundial da Paz de 1969 em Lisboa e no Porto, nos conhecidos acontecimentos da capela do Rato, em finais de 1972, ou nos debates, que tiveram lugar em 1973, na igreja paroquial de Olivais-Sul, na Assembleia Comunitária de Almada, e em outros locais, correspondia à área visível de um movimento demaior profundidade e alcance(9).
De qualquer maneira, as posições anti-guerra afirmadas corresponderam sempre a atitudes que se podem considerar de resistência passiva, ou então de reflexão crítica, não de uma propaganda sistemática, organizada e com objectivos práticos claramente enunciados. Parecem muito sintomáticas as palavras-chave que constam da moção aprovada no debate destinado a “debater os problemas da guerra”, seguido de vigília e greve de fome de 14 pessoas, que decorreu na capela do Rato em 30 e 31 de Dezembro de 72: “repúdio”, “denúncia”, “solidariedade”, “apelo”, expressões todas elas características de uma atitude de protesto em relação ao prosseguimento da guerra e de admissibilidade a propósito dos direitos dos povos das colónias, mas defensiva no que respeita a um combate político de enfrentamento directo com o governo(10). Isto apesar de jornais como A Voz da Madeira lhe haverem chamado de “terrorismo de capela”, e de, em discurso inflamado na então Assembleia Nacional, Franco Nogueira ter mencionado aqueles factos como prova inequívoca da existência de uma inaceitável “teologia da violência”(11). A mensagem de Paulo VI para a celebração do 1º de Janeiro, Dia Mundial da Paz, de 1973 intitulava-se “A Paz é Possível”, e foi justamente esse o título atribuído a um panfleto da Juventude Estudantil Católica (JEC), no qual se lamenta “uma desgastante situação de guerra para a qual não se vê esboçar qualquer atitude que procure promover uma solução pacífica do conflito” e se afirmava, num contexto de intervenção dos católicos na busca de uma solução para o mesmo, que “a política é uma forma exigente de viver o compromisso cristão”(12). Uma consequência lógica daquela que era na época a atitude oficial do Vaticano nestas matérias.

9 Veja-se António Marujo, “O 25 de Abril dos padres”, O Público, 18 de Abril de 1999.
10 “A paz é obrigatória”, panfleto, 7 de Janeiro de 1973.
11 Franco Nogueira, “A virtude da paz e o pecado do pacifismo”, A Voz da Madeira, 21 de Fevereiro de1973.
12 “A paz é possível”, panfleto, JEC, 1973, pp. 9 e 15.

Mas, na verdade, evitava-se a proclamação explícita de uma posição de “guerra à guerra”(13).
O Boletim Anti-Colonial, folheto periódico publicado por este sector de opinião, excluiu sempre uma posição de luta aberta, de rua, contra o conflito colonial, acentuando sobretudo a importância do isolamento internacional de Portugal e tentando estimular, por intermédio da divulgação da real dimensão da actividade de determinados grupos económicos nos territórios coloniais, da denúncia de alguns massacres particularmente terríveis, da divulgação muito documentada de atitudes tomadas pelos governos de outros países, o levantamento de uma opinião pública interna que pudesse vir a mostrar-se favorável à construção de uma situação ideal de paz negociada.

Por essa altura – e ultrapassadas já as fortes reservas que no passado afirmara em relação a uma solução do problema colonial fora do quadro de transformações na política metropolitana(14) – o Partido Comunista fundava a sua posição numa atitude de clara simpatia e de efectivo apoio às posições defendidas pelos movimentos independentistas. Desde o início do processo, partilhava da ideia segundo a qual a emancipação dos povos coloniais e a luta do povo português pela liberdade, possuindo um inimigo comum – o governo anti-democrático e colonialista – se encontravam estreitamente associadas. Logo em Dezembro de 1961, a propósito dos acontecimentos da Índia, considerava o Avante! que “se a Nação não se levantar
urgentemente para dizer não à política fascista e colonialista do governo de Salazar, à guerra sangrenta e interminável de Angola e à guerra de Goa, seguir-se-ão inevitavelmente outras guerras coloniais, (...) cujo resultado final só poderá ser um desastre nacional para o povo português”(15). No mesmo número da publicação, aliás, inserem-se já, tal como irá sucederá em muitas edições posteriores, diversas notícias sobre formas de resistência à guerra africana – recusas ao embarque, levantamentos de rancho, propaganda nos quartéis, etc. – assim como um artigo, intitulado “Colonialismo Sangrento”, no qual se denunciam as iniciativas excepcionalmente violentas de ocupação militar, de “colonização dos militares” como considerava o redactor, que no momento se encontravam a ser aplicadas no norte de Angola.

13 Palavra de ordem abusivamente utilizada num panfleto, assinado por um “grupo autónomo de estudantes”, que se propunha ampliar, num sentido bastante mais politizado, a solidariedade para com o grupo da capela do Rato.
14 Veja-se Dalila Cabrita Mateus, A Luta pela Independência. A Formação das Elites Fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC, Mem Martins, Inquérito, 1999, pp. 80-84.
15 Avante!, série VI, no. 311, 1ª quinzena de Dezembro de 1961, p.2.

Assunto retomado num artigo que dará conta de atrocidades cometidas pelas tropas portuguesas e apelará, pela primeira vez, a que os próprios soldados exijam “o fim do  massacre colonial”, e, se preciso for, voltem "as armas contra os oficiais colonialistas que os comandam, exigindo o fim da guerra colonial e o seu regresso à metrópole"(16).
A resistência à guerra será naturalmente mantida, e ampliada até, quando o teatro de operações se estendeu à Guiné e depois a Moçambique. Gradualmente, porém, o discurso ultrapassa a oposição pontual a uma situação que o Partido Comunista Português considerava injusta e atentatória dos interesses vitais do povo português e dos direitos nacionais dos povos das colónias, para aproximar os dois campos de luta, tomados agora como inseparáveis. Num artigo publicado pelo Militante em Outubro de 1964, essa posição é já bastante nítida, acentuando-se aí, a partir do axioma, aplicado por Marx ao domínio da Irlanda pelo governo inglês e de acordo com o qual “não pode ser livre um povo que oprime outros povos”, que os interesses dos sectores da burguesia monopolista ligada à exploração colonial se articulavam com o poder que esta internamente detinha, reforçando a exploração exercida sobre os trabalhadores portugueses dentro do território metropolitano. Escreve-se, por isso, que Portugal “seria um país mais progressivo se não tivesse colónias”, e, em consequência, que a uerra colonial representa “um centro onde vão dar todas as lutas da classe operária e do nosso povo”(17).
A forma efectiva de conduzir a luta interna contra a guerra irá no entanto evoluindo, no sentido de se considerar ser este um combate prioritário mas que poderá, e muitas das vezes deverá, ser separado de outras das frentes da actividade dos comunistas e da oposição. Por este motivo, não é de estranhar que muitos dos números do órgão central do PCP não contenham referência alguma, ou o façam de forma breve, em relação aos acontecimentos da guerra e à organização da oposição à mesma. Parece legítimo, aliás, supor que a definição programática da necessidade de organizar uma “Revolução Democrática e Nacional”, definida em Setembro de 1965 no VI Congresso do partido com base no relatório de Álvaro Cunhal intitulado Rumo à Vitória, se encontre na origem dessa posição: as tarefas prioritárias, cuidadosamente identificadas e ordenadas aí segundo a sua importância na definição das prioridades de luta do partido, atribuíam um papel, é verdade, ao “reconhecimento aos povos das colónias do direito à independência” e às formas de resistência à guerra empreendidas por militares no activo, mas não consideravam esta como uma batalha absolutamente prioritária(18). Portugal, “país colonizador e colonizado”, que “tem um Ultramar porque é um ‘Ultramar’ para os outros”, deveria em primeiro 

16 Avante!, série VI, no. 313, Fevereiro de 1962, p.4.
17 “A aliança com os povos coloniais realiza-se na luta!”, Militante, no. 130, Outubro de 1964, pp. 8-10.
18 Veja-se Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória. As Tarefas do Partido na Revolução Democrática e
Nacional, 2ª. ed., Lisboa, 1979.

lugar abandonar esta segunda condição, para melhor poder anular a primeira. Abater o regime para poder depois conversar com os outros. O “internacionalismo, elemento integrante do marxismo”(19) é regularmente invocado para legitimar a solidariedade combativa do povo português com os povos dos territórios coloniais, mas esta passa em primeiro lugar pela luta que este trava internamente contra um regime opressor.
Aí radica também a atitude do PCP em relação ao problema da deserção. Por razões políticas mas também de consciência, o tema – que, como se verá mais à frente, será um dos principais pontos de discórdia com a extrema-esquerda – será levantado em diversos momentos. Aquilo que, timidamente, os socialistas só já nos inícios da década de 70 começarão a reconhecer – o facto de a juventude, de modo crescente, não dever “reconhecer ao governo da ditadura fascista autoridade para a obrigar a fazer uma guerra colonial”(20) – já os comunistas adiantavam desde o início da guerra(21). Será todavia por volta de 1965-1966 que a defesa da deserção como atitude louvável ou mesmo revolucionária passa a ser temperada pelo enquadramento desse momento de combate individual ao regime em termos dos objectivos políticos partidários. Neste sentido, será fundamental a publicação, no Militante, de um documento que tinha como título a expressão programática: “Criar uma forte organização militar é uma das tarefas mais urgentes do Partido”.
Atribui-se nele uma enorme importância à organização dos comunistas nos quartéis e à propaganda junto dos soldados, apontando um conjunto de alvos: “contra a guerra das colónias, contra a violência das manobras e exercícios militares, contra as injustiças e vexames vindos dos oficiais e comandos fascistas, contra a intromissão de oficiais estrangeiros e a instalação de bases estrangeiras em território nacional, contra a política de traição nacional do governo fascista, contra o terrorismo político e a repressão, contra a ausência de liberdades democráticas.”. É porém o tema de deserção aquele que maior desenvolvimento merece neste documento. Declara então O Militante: “É sabido que o partido não só se não opõe, mas preconiza e aplaude a deserção de soldados, sargentos e oficiais que não querem participar nas criminosas guerras coloniais. (...) A organização de deserções colectivas (...) devem portanto continuar e intensificar-se tanto quanto possível”. Esclarece-se porém que o partido “no que se refere aos seus militantes, não pode apoiar a deserção quando ela se faça isoladamente”, uma vez que tal corresponderia a privar muitos jovens de serem esclarecidos, dentro das próprias forças armadas, sobre o carácter negativo da política colonial do governo. 

19 “O internacionalismo proletário, as guerras coloniais e o imperialismo”, Militante, no. 143, Maio de 1966, p1.
20 Portugal Socialista, no. 29, Julho de 1971, pequena nota sem título e assinada “Adelino”, a p. 3.
21 Imediatamente após 1961, como sublinhou Pedro Ramos de Almeida, em Salazar. Biografia da ditadura, Lisboa, 1999, p. 628.

Diz-se mesmo: “Na luta contra a guerra colonial, os comunistas têm de ir tão longe quanto possível, inclusive até às frentes de batalha, sempre com o objectivo de esclarecer os outros soldados que não devem combater, que não devem arriscar a vida para defender os interesses dos monopolistas e outros inimigos da Pátria”. De igual forma, excluise a deserção antes de assentar praça ou mesmo da ida à inspecção, perguntando-se: “como conciliar a atitude destes camaradas com os objectivos da revolução se eles fogem inclusive a aprender o manejo das armas?”(22). Pouco tempo depois, juntar-se-á, em novo artigo, um esclarecimento complementar: “O Partido desaprova as deserções individuais dos membros do Partido, os quais só poderão desertar quando estão em risco eminente de serem presos como consequência da sua acção revolucionária ou quando acompanharem deserções colectivas.”(23)
A verdade é que, sensivelmente a partir dos meados de 1968, as referências à guerra, e sobretudo à forma de lhe fazer frente, tornam-se raras nas páginas do Militante, mas tal não parece corresponder a um menor empenho do PCP nesta área do combate político, uma vez que o Avante! prossegue, agora já com grande regularidade, a sua campanha de denúncia da situação militar. Assim, em 1969, com Salazar apeado do poder, publica-se um longo documento de estratégia política, no qual é claramente declarado que “a questão colonial é uma questão central da política portuguesa”, ainda que se insista mais nas consequências do sistema colonial para o reforço dos sectores sociais dominantes do que se procure desenvolver linhas de resistência activa(24). A primavera marcelista parece, também neste domínio, suscitar algum compasso de espera. Mas em Janeiro de 71, quando a sua falência se mostra já inevitável, o jornal volta à carga com uma extensa e dura tomada de posição. Nela se pode ler:
“O povo português exige o fim imediato da guerra colonial, (...) a abertura de negociações com os legítimos representantes dos povos das colónias (...), o reconhecimento do direito desses povos à completa e imediata independência.”(25)
O desenvolvimento de posições de combate mais directo contra as guerras coloniais, por parte dos comunistas, travar-se-á ainda dentro de um outro enquadramento organizativo.
Concretamente através da sua actividade dentro da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), proclamada em Dezembro de 62 e com sede definitivamente estabelecida, a partir de 64, em Argel. Integrando sectores diversos da oposição, que incluíam inicialmente o próprio general Delgado, a FPLN desenvolverá uma permanente actividade de oposição ao regime salazarista, a qual, para além da prática organizativa e conspirativa, integrará uma notável actividade de propaganda, que passará pela manutenção da Rádio “Voz da Liberdade” – cujo “rosto” foi durante anos, para muitos portugueses que a ouviam religiosamente, a voz de Manuel Alegre – e pela publicação de importante quantidade de material impresso, destinado tanto à emigração como ao interior. Num e noutro dos casos, a actividade de militância contra a guerra ocupará sempre um lugar de primeiríssima importância.

 22 “Criar uma forte organização militar é uma das tarefas mais urgentes do Partido”, O Militante, no. 141, Janeiro de 1966, p. 1-3.
23 “Os jovens comunistas e a guerra colonial”, O Militante, no. 144, Agosto de 1966, pp. 8 e 2.
24 “Sem Salazar o salazarismo continua – só a luta porá fim ao fascismo”, Avante!, série VI, no. 398 (especial), Janeiro de 1969, a p. 4.
25 “Unidade na acção para a conquista da liberdade! Pelo fim da guerra colonial!”, Avante!, série VI, no. 424, 1ª quinzena de Janeiro de 1971, a pp. 1-3.

Em 1965 começa a ser editado o Passa Palavra, definido como “órgão dos militares da FPLN”, que sugere formas de organização e de protesto, nomeadamente através da recusa à disciplina, mas que, durante algum tempo, evitará sugerir a deserção. Esta virá a tornar-se, no entanto, uma das bandeiras da Frente, o que deverá ter sido possibilitado pelo abandono das hostes delgadistas, nada simpatizantes de práticas tão marcadamente anti-militaristas. Logo no seu primeiro número, o Liberdade, órgão oficial da renovada FPLN, trará então um artigo no qual o tema é levantado de forma clara(26), e algum tempo depois o assunto merecerá a divulgação de sugestões claras a quem lesse esta imprensa: “Para quê continuar a sofrer nesta maldita guerra? (...) Desertemos!”(27), exclama, mencionando dados impressionantes sobre o volume de refractários e de desertores. Pouco antes, tinham já sido divulgadas sugestões de combate contra a guerra claramente próximas das propostas do PCP: “Finge que combates, mas evita tanto quanto possas perseguir os patriotas africanos. (...) Organiza a deserção e a revolta contra a guerra (...). Procura o contacto com os movimentos de libertação e prepara a tua deserção e a daqueles camaradas da tua confiança”(28). O movimento de fuga de jovens em relação à incorporação no exército e à mobilização para a guerra colonial era de facto espantoso, sem qualquer semelhança com o que então acontecia nos outros Estados europeus: em 1961 a percentagem de faltosos foi de 11,6%, em 62 subira já para 12,8%, em 1963 atingia os 15,6%, em 1964 subia para 16,5%, entre 1965 e 1968 rondaria os 19%, e entre 70 e 72 andou sempre muito perto dos 21% (29).
Entretanto, em 1970, numa altura em que se torna inevitável a saída dos comunistas das actividades da FPLN, torna-se pública a actividade da Acção Revolucionária Armada (ARA), criada pelo PCP para a luta armada “contra o fascismo, o colonialismo e o imperialismo”, e que tomará as instalações militares como alguns dos seus alvos. A organização terá dados os primeiros passos algum tempo antes, mas só nessa altura começa a levar a cabo operações de impacte, destinadas a desestabilizar o regime e voltadas “directamente contra a máquina deguerra colonialista”(30). Nesta direcção, seriam feitos atentados contra o navio de transporte de tropas Cunene, um armazém de equipamento militar da Companhia Colonial de Navegação, a Base Aérea no. 3 de Tancos, o Quartel-general do Comiberlant em Oeiras e um outro depósito de material de guerra em Alcântara.

26 “Guerra em três frentes”, Liberdade, no. 1, Fevereiro de 1966.
27 “O povo está a morrer numa guerra perdida”, Passa Palavra, s.n., Julho de 1968.
28 “O que podes fazer contra a guerra”, Passa Palavra, s.n., Maio de 1968.
29 Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 1º Volume. Enquadramento Geral, publicado pelo Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1988, pp. 254-270.
30 Avante!, série VI, no. 435, Novembro de 1972, p. 2.10

Como lembrou há pouco tempo Jaime Serra, destacado militante comunista e um seu antigo dirigente, as principais acções da ARA tiveram “por alvo preferencial objectivos relacionados com o apoio à luta contra a guerra colonial, ‘poupando’, por esta razão, o aparelho repressivo do regime fascista”(31).
Cerca de um ano após a ARA ter desencadeado a sua primeira acção, as Brigadas Revolucionárias (BR), próximas de uma FPLN que se havia então afastado já do PCP, levavam a cabo, a 7 de Novembro de 1972, uma primeira iniciativa armada contra instalações da NATO na Fonte da Telha, considerada em comunicado como acto de “solidariedade entre o povo português e os povos das colónias”(32). Formadas em meados de 1970 e dirigidas, entre outros, por um antigo quadro do Partido Comunista na emigração, Carlos Antunes, as BR irão infligir diversos golpes no regime, tomando também como alvo sistemático diversas instalações militares(33). Ao contrário daquilo que vinha então fazendo a Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), fundada em 1967, dirigida por Palma Inácio e mais próxima dos socialistas, que se voltara principalmente para iniciativas de grande espectacularidade.
Todavia, a organização de uma acção anti-colonialista clara e empenhada construída à margem do PCP tinha começado bastante mais cedo, principalmente junto dos meios estudantis e da emigração. No primeiro caso, a União dos Estudantes Comunistas (UEC), organização do partido para o sector estudantil, centrando em larga medida a sua acção no combate semi-legal contra as políticas educativas do governo, não colocava como tarefa prioritária – embora a considerasse – a oposição a uma situação que, por múltiplas razões, afligia directamente e revoltava os estudantes do ensino superior. Tornou-se assim menos difícil a organização de combativos grupos estudantis de extrema-esquerda que tinham a guerra como eixo de uma grande parte das suas iniciativas. Por outro lado, nos meios da emigração, onde muitos exilados e desertores actuavam no sentido da politização dos trabalhadores emigrados, organizaram-se também grupos activistas, constantemente empenhados em acções de natureza anti-colonialista.

31 Jaime Serra, As explosões que abalaram o fascismo: o que foi a ARA, Lisboa, 1999, p. 127. Veja-se também Raimundo Narciso, A.R.A. – Acção Revolucionária Armada. A história secreta do braço armado do PCP, Lisboa, 2000.
32 Declaração das Brigadas Revolucionárias transcrita no Comunicado no. 3, dos serviços de imprensa da FPLN, 11 de Julho de 1972.
33 Veja-se João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, Porto, 1993, pp. 371-377, e “Carlos e Isabel – Acções explosivas”, depoimentos transcritos por José Freire Antunes em A Guerra de África, 1961-1974, vol. II, Lisboa, 1995, pp. 907-920.

Tal aconteceu com a participação de um grande número de organizações e de facções que se reclamavam da pureza do marxismo-leninismo, e que haviam tido a sua génese em 1964, com a criação do Comité Marxista Leninista Português (CMLP) e da Frente de Acção Popular (FAP), construídos com base na iniciativa de dissidentes do PCP. Desde os primeiros documentos, a temática anti-colonialista encontra-se muito presente nos objectivos políticos deste sector, sendo essa aliás uma das marcas de divergência em relação aos documentos, a esse respeito menos voltados para um combate imediato, que então os comunistas produziam.
É um facto que, no mesmo número do Avante! no qual se faz uma “crítica severa as tendências esquerdistas, terroristas e aventureiristas” de 1964 – referindo-se, obviamente, às posições divergentes de Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente, Rui d’Espinay e outros militantes do CMLP – se apresenta um relatório sobre as “tarefas imediatas do Partido”, assinado por Alexandre Castanheira, no qual o combate anti-colonial é remetido para duas linhas onde genericamente se constatam apenas algumas “lutas de soldados nos quartéis”(34). Como se viu, esta atitude menos activa será posteriormente alterada pelo PCP.
Mas o CMLP, atribuindo desde a origem um papel determinante à luta armada no derrube do regime salazarista e do sistema capitalista, assumirá, naturalmente, uma enorme empatia em relação aos movimentos nacionalistas de guerrilha que lutavam nas colónias contra o fascismo.
Logo no primeiro número, do Revolução Popular, órgão do CMLP, de Outubro de 1964, se declara que “o começo das guerras revolucionárias de libertação dos povos das colónias portuguesas assinalou a passagem a uma nova fase da luta anti-fascista em Portugal”(35). A posição imediatamente defendida é a de que a luta armada dos movimentos independentistas se deveria articular com a luta armada dos revolucionários portugueses. Atitude tomada, em nome de uma “Revolução Democrática-Popular” subordinada à aliança operário-camponesa e inevitavelmente armada, recusando a proposta do PCP de uma “Revolução Democrática e Nacional”, não necessariamente violenta, dotada de uma base social muito mais ampla e obtida através dessa “unidade de todos os portugueses honrados”, que estes sectores mais radicais nunca deixarão de criticar. O já mencionado relatório Rumo à Vitória, de Cunhal, no qual esta linha táctica se encontra exposta, definirá, para Martins Rodrigues, “uma linha para a liberalização burguesa e um rompimento total com o marxismo”(36).
Todavia, a posição mais original a respeito do combate anti-colonial, que inclusivamente a generalidade da extrema-esquerda posteriormente ignorará, surgirá, em Dezembro de 65, num longo e fundamentado artigo do Revolução Popular. Aí se desloca a responsabilidade do domínio colonial por parte do governo de Salazar para o próprio sistema colonialista, vindo de um passado que os republicanos haviam mantido intocável, e para o capitalismo, do qual é justamente o colonialismo o principal agente em Portugal e nos territórios africanos.

34 Avante!, série VI, no. 352, especial, Fevereiro de 1965, pp. 1, 2 e 4.
35 Revolução Popular, no. 1, Outubro de 1964, p. 3.

 Aborda-se também, de forma particularmente ousada, o “chauvinismo”, que para o CMLP existe “entre o povo” e também, sem qualquer dúvida, dentro do próprio movimento operário, pois “na sociedade capitalista-imperialista todos têm um pouco a mentalidade de colono”, o que favoreceria a manutenção da dominação colonial e a continuação da guerra. Regressa-se assim à crítica ao PCP: ao “fabricarem um movimento anti-colonialista comum ao proletariado e à burguesia”, os seus responsáveis “revisionistas” acabam por calar interesses colonialistas existentes em sectores importantes das classes médias e, ao mesmo tempo, por “ignorar o chauvinismo infiltrado nas massas”(37). Um ponto de vista que este lado da esquerda, no seu estrutural populismo, posteriormente quase ignorará.
Após a prisão dos seus principais dirigentes, o CMLP e a FAP desmembram-se, enquanto muitos dos seus militantes se vêm forçados ao exílio. Vão então constituir-se três ramos do CMLP, todos com a mesma designação mas publicando jornais diferentes e com linhas não coincidentes: O Comunista, Unidade Popular e O Bolchevista. O primeiro ramo viria a riginar o jornal O Grito do Povo e a Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP); o segundo dará lugar ao Partido Comunista de Portugal Marxista-Leninista, que se subdividiria depois nas facções “Vilar” e “Mendes”; o último conduzirá à formação do Comité de Apoio à Reorganização do Partido Marxista-Leninista (CARPML), à União Revolucionária Marxista-Leninista (UR-ML) e ao Comité Comunista Revolucionário Marxista-Leninista
(CCR-ML). Estas duas organizações acabarão aliás por se unir à maioria da OCMLP e a parte do PCP-ML para, apesar das práticas diferenciadas que mantiveram nos anos de clandestinidade fundarem, já após o 25 de Abril, o Partido Comunista Português Reconstruído (PCP-R) e a União Democrática Popular (UDP). Tudo isto, entre um grande número de dissidências menores cuja história, por vezes com alguns contornos dramáticos ou caricatos, se encontra ainda por escrever(38).
Este débil panorama organizativo será, todavia, contrabalançado em parte pela prática activista da maioria dos militantes m-l, os chamados “maoístas”, os quais, apesar da divisão interna e das debilidades estruturais, foram capazes de manter uma certa influência junto de importantes sectores sociais. Desde logo na emigração, sobretudo a fixada em França, onde até ao início da década de 70 se fixou a maioria dos seus membros. 

36 Francisco Martins Rodrigues, Elementos para a História do Movimento Operário e do Partido
Comunista em Portugal, ed. policopiada, s. l., s. d., p. 75.
37 “Os comunistas e a questão colonial”, Revolução Popular, no. 6, Dezembro de 1965, pp. 3-12.
38 Veja-se João Paulo Martins e Rui Loureiro, “A extrema-esquerda em Portugal (1960-1974). 1 – Os marxistas-leninistas e os trotskistas”, História, no. 17, Março de 1980, pp. 8-23.

Não pode, neste contexto, ignorar-se a actividade constante e razoavelmente organizada do grupo que se constituiu em Paris –
 promovendo agitação política directa, edição de publicações, festivais de teatro e de música de intervenção, jogos florais, etc. – à volta de
O Salto, “jornal dos trabalhadores portugueses emigrados”, o qual manterá, desde o número inicial de Dezembro de 1970, uma articulação constante entre a condição do emigrado e a do resistente e desertor, em ruptura com o fascismo e o colonialismo e por estes forçado a uma vida de indesejada errância e de graves dificuldades materiais(39). Enquanto se procuram constantemente divulgar junto da comunidade emigrante as razões dos movimentos de libertação e as acções anti-colonialistas desenvolvidas no interior de Portugal, afirma-se aqui, a respeito da deserção, talvez a mais radical de todas as posições – claramente oposta à do PCP – apelando insistentemente a que os rapazes portugueses “desertem imediatamente, mesmo antes de qualquer contacto com o exército!” (40).
O jornal A Voz do Desertor será a expressão mais completa de uma preocupação com esta forma de resistência à guerra. Surgirá tardiamente, em Fevereiro de 1973, como publicação “dos desertores e refractários à guerra”, assumindo uma atitude de ruptura com qualquer forma de concessão ao regime, devido precisamente à sua política colonial. Chega-se por esse otivo a apelidar Francisco Pereira de Moura – então prestes a ser demitido do seu lugar de professor catedrático do Instituto Superior de Economia por ter sido um dos grevistas da fome da capela do Rato – de “neocolonialista notório”, simplesmente porque este havia sido candidato a deputado pelo MDP-CDE nas eleições de 69 para a Assembleia Nacional(41). O jornal demarca insistentemente as posições que defende daquelas sugeridas pelo PCP – que, segundo declara, “aconselha os jovens soldados revolucionários a irem à guerra e não desertarem” –, ou das avançadas pelos sectores que propunham essencialmente sabotagens violentas do esforço militar e deserções colectivas, e não a recusa liminar a uma qualquer forma de participação na guerra(42).
Foi no entanto no movimento estudantil e nas suas áreas sociais e culturais limítrofes que, dentro do país, o combate anti-colonial protagonizado pela corrente maoísta assumiu maior expressão. O movimento estudantil viverá, a partir do ano lectivo de 1970-1971, um processo de radicalização. Apesar de dura repressão governamental – que, para além das prisões efectuadas, incorporará compulsivamente nas forças armadas muitos dos seus dirigentes e activistas – a “crise de 69”, iniciada em Coimbra, tivera ainda como ponto de partida reivindicações de uma natureza principalmente reformista, voltada para objectivos mais especificamente estudantis. Ela coincidira com a denominada “primavera marcelista”, período de inegável abertura política, e com os ecos longínquos do Maio de 68, que então chegaram ainda muito filtrados. 

39 Pedro Faria, “A guerra colonial como causa da emigração”, O Salto, no. 8, Fevereiro de 1972.
40 O Salto, no. 10, Junho de 1972.
41 A Voz do Desertor, no. 1, Fevereiro de 1973, p. 1.

Foi preciso esperar pelo novo endurecimento do regime, coincidente  com nova tentativa de sufocar o movimento associativo estudantil, com o reacender dos combates coloniais, em particular na Guiné, e com a efectiva entrada em cena da influência soixante-huitiard, por via da propaganda política e do retorno ao país de diversos activistas, para se assistir a uma rápida e acentuada politização dos estudantes. Entram assim em cena palavras de ordem que colocavam radicalmente em causa o regime político e até o sistema económico vigentes, tornando-se a luta anti-colonial uma preocupação constante e absolutamente prioritária deste movimento mais polítizado.
Os maoístas vão-se afirmar, apesar da dispersão, como corrente que, também neste campo, manifestará uma radicalidade e uma ousadia que o PCP, voltado pois para uma estratégia de transformação do regime com base num amplo levantamento de carácter nacional e sociologicamente abrangente, não queria nem podia manter. É assim que aquela linha política, detectada já na actividade política da emigração, surge a partir de 70-71 no interior do país, centrada em particular nos ambientes estudantis do Porto, de Coimbra e de Lisboa, ainda que também com alguma ligação a sectores da juventude operária.
Os Cadernos Necessários haviam já dado o mote, atribuindo um enorme destaque, nos cinco números policopiados que saíram entre Junho de 1969 e Março de 1970, à questão colonial.
Quem fazia os Cadernos? Recorro ao testemunho de um dos seus fazedores: “Havia exmilitantes do PCP, próximos do PCP, ex-católicos progressistas, intelectuais influenciados pelo impulso de Maio de 68, etc. E havia uma grande amizade que os unia de um modo muito firme. Eram arquitectos, estudantes, médicos, advogados, professores, empregados, etc., que mais tarde, na sua parte nuclear, se mantiveram unidos em outras batalhas: apoio aos movimentos urbanos nascentes, luta anti-colonial, etc.”(43). O grupo montaria uma estrutura clandestina que funcionou durante mais de dois anos, tendo como objectivo “actuar criticamente, reflectindo e fazendo reflectir”. Mas a sua iniciativa de maior impacte foi certamente a publicação clandestina de cinco grossos cadernos e um volume de textos, com tiragens de mil exemplares que depois circulavam de mão em mão, e que dedicava sempre uma atenção muito grande ao problema da guerra e à circulação de informação a respeito das suas condicionantes e desenvolvimentos, declarando desde o início querer “contribuir para o alargamento de um movimento de resistência e oposição à guerra (...) e a favor de uma descolonização completa”(44).

42 “A nossa posição face à deserção”, A Voz do Desertor, no. 2, Maio de 1973, pp. 1-2.
43 Mário Brochado Coelho, “Carta aos amigos por alturas da morte de Marcela Torres”, Fevereiro de 2001.
44 Cadernos Necessários. 1969-1970, Porto, 1975, p. 28.


Não sendo os Cadernos Necessários uma publicação de natureza partidária, a profusão de citações combinadas de obras de Lenine, de Estaline e, mais veladamente, de Mao, assim  como os propósitos activistas que animavam quem os fazia, permite-nos estabelecer porém alguma proximidade em relação aos grupos que, principalmente dentro do movimento estudantil, retomavam a herança de um activismo à esquerda do PCP e, de alguma forma, também contra o PCP. Isso mesmo percebeu Álvaro Cunhal, ao consagrar longas páginas do texto que escreveu contra as várias formas de “esquerdismo” justamente aos Cadernos(45). Em O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, de 71, o secretário-geral dos comunistas abordou também, explicitamente, a “questão colonial”, procurando rebater algumas das acusações que, à sua esquerda, eram feitas ao partido. Escreveu ele aí: “para estes radicais pequeno-burgueses a única tarefa é a ‘revolução popular que derrube a ordem capitalista e fascista’ (...). Até lá nada haveria a fazer da parte dos portugueses, além dapublicação de uns tantos ‘Cadernos’ teorizantes”(46). O intenso activismo anti-colonialista da extrema-esquerda encarregar-se-á porém de desmentir o exagero desta interpretação, aparecida nesta obra cheia de preconceitos e de generalizações, talvez a menos consistente das publicadas pelo autor. “as armas contra os oficiais colonialistas que os comandam, exigindo o fim da guerra colonial e o seu regresso à metrópole”(16).
Nesta direcção, a UR-ML, particularmente activa em Lisboa, empenhar-se-á desde o início no combate anti-colonial, ainda que, curiosamente, e ao contrário dos restantes grupos marxistasleninistas e do próprio PCP, não proponha a deserção como atitude defensável: “desertar é apenas uma atitude individualista e oportunista”, declara, uma vez que, segundo considera, “é em Portugal, nos seus locais de trabalho (..), que os trabalhadores portugueses terão de lutar”. Além disso, este grupo entende que “a deserção conduz necessariamente à perda de elementos com os quais a Revolução Proletária poderia contar”. No caso dos jovens que procura influenciar serem destacados para a guerra, estes deveriam então, no seu teatro, promover um conjunto de acções consideradas revolucionárias: “continuação da propaganda contra a guerra colonial, sabotagem, espionagem, aniquilamento de bufos e elementos importantes do exército, interferência nas operações, estreita colaboração com os movimentos de libertação, etc., etc.”(47). Como se pode ver, todo um conjunto de iniciativas capazes de deixar estarrecido qualquer militar profissional.

45 Álvaro Cunhal, O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, 2ª ed., s.l., 1971,
principalmente a pp. 10-49 e 99-105.
46 Idem, ibidem, p. 60.
47 “A guerra colonial e a luta revolucionária no exército”, Folha Comunista, no. 2, Julho de 1971.
48 Apenas a partir do seu no. 10, de Agosto de 1971, este jornal passará a definir-se como “órgão central do Partido Comunista de Portugal (M-L)”, coincidindo com a transformação orgânica deste sector da corrente m-l.


Ao contrário do PCP-ML, cujo jornal, o Unidade Popular, publicado a partir de Março de 1969 ainda como órgão central do CMLP (48), quase não fala da guerra – em função das prioridades atribuídas por esta facção, na definição da sua política, aos problemas internos de formação política e organização – a OCMLP, caracterizada por um comportamento muito mais voluntarista, usará o seu jornal clandestino, O Grito do Povo, e os Comités Revolucionários de  Estudantes Comunistas (CRECs) para, em particular no Porto e em Coimbra, divulgar eventos relacionados com a guerra, sempre que estes eram desfavoráveis ao exército português, apelando continuadamente, uma vez mais, para a deserção. Ligados também à OCMLP, os Comités de Luta Anti-Colonial e Anti-Imperialista (CLACs), divulgarão, em 1973, um conjunto de três tarefas políticas que mostrará a radicalidade da sua luta:
“1. Apoio político aos movimentos de libertação traduzido na defesa da sua justa causa, na divulgação dos seus programas políticos junto dos trabalhadores portugueses, na divulgação das vitórias alcançadas pelos movimentos de libertação (...), no combate aos pacifismos (...); 2. Combate ao chauvinismo incutido pela burguesia nas massas, ao social chauvinismo ´de esquerda’ dos oportunistas (...) e todos os neo-colonialistas (...), ao imperialismo e ao social-imperialismo; 3.Propaganda pela recusa de defesa da pátria imperialista, fomentando a deserção após a instrução militar, fazendo agitação no seio do exército colonialista, sabotando o esforço de guerra da burguesia, defendendo junto dos trabalhadores a necessidade de derrota do exército colonialista português49.
O posicionamento desta organização, que partirá sempre do princípio de acordo com o qual a derrota na guerra colonial será “um grande passo em frente na caminhada do povo português contra o capitalismo”(50), revela também uma das características essenciais deste sector – coincidente aliás com as dos modelos chinês e albanês que tanto apreciava – que é a extrema animosidade, aliás recíproca, experimentada em relação às posições do PCP.
Este tipo de atitude representará um dos leitmotiv da propaganda política do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), fundado em 1970 com base na antiga Esquerda Democrática Estudantil (EDE). Esta organização, caracterizada por um profundo sectarismo em relação à generalidade da restante esquerda – que aliás considera direita – e por uma linguagem pleonástica e triunfalista, que decalcava, um pouco à maneira da Esquerda Proletária francesa e do seu jornal La Cause du Peuple, as palavras de ordem e orientações estereotipadas dos comunicados dos comunistas chineses do tempo da Revolução Cultural, desenvolveu de uma forma crescente a sua própria propaganda contra a guerra, mas presumindo para si mesma uma condição de vanguarda desse combate. Em 1971, os dois primeiros números do jornal Luta Popular são exclusivamente consagrados à “grande, gloriosa e justa luta revolucionária de libertação nacional dos povos oprimidos das colónias”, servindo a data de uma manifestação contra a guerra que tinha sido convocada pelo movimento para “marcar o início da condução proletária da luta contra a guerra colonialimperialista” (51). Nesta mesma direcção, através do organismo que cria especificamente para este combate, o Movimento Popular Anti-Colonial (MPAC), ou da sua organização estudantil, a Federação dos Estudantes Marxistas Leninistas (FEML), o MRPP fará sucessivas proclamações, promoverá inscrições murais e convocará algumas manifestações-relâmpago de rua. Para uma delas, produz uma convocatória paradigmática do modelo semântico, bastante peculiar, que se celebrizará depois nos murais do pós-25 de Abril. Nela se afirma que o movimento “conclama as grandes massas do povo de Portugal a manifestarem na rua, por todo o país, (...) o seu apoio sem reservas, firme, activo e militante à grande, gloriosa, justa e invencível guerra popular de libertação nacional dos povos de Angola, de Moçambique e da República da Guiné-Cabo Verde, e exorta-as a organizarem-se e a combaterem com ousadia e firmeza inabalável o inimigo comum dos nossos grandes povos”(52). Apesar do grande desgaste deste movimento no constante enfrentamento com outras correntes – num dado momento, hega a apelidar um conjunto de outros grupos m-l de “colonialistas” só porque estes tinham marcado uma manifestação para a mesma hora em que eles pretendiam marcar outra... – é inegável que, desde o início, as suas iniciativas tiveram grande combatividade e uma visibilidade pública que transcendeu os meios universitários.
Outras correntes minoritárias dentro da esquerda radical, tiveram neste processo um papel sem dúvida menor. É o caso dos trotskistas, praticamente sem expressão organizativa significativa antes de 1970 e que, na sua imprensa clandestina, se mostraram principalmente interessados – como se pode verificar folheando as colecções de jornais como a Acção Comunista, a Toupeira Vermelha ou o Luta Proletária – na dimensão internacionalista da resistência à guerra, defendendo a construção gradual de uma opinião favorável à acção dos movimentos de libertação. Propondo o fim do regime como forma de propiciar o reconhecimento das independências, recusavam-se, por este motivo, a atribuir prioridade a um activismo anticolonialista imediato, construído, como faziam os maoístas, em acções rápidas de rua e de parede. Sugeriam pois, fundamentalmente, uma atitude de resistência à guerra centrada em processos de consciencialização política.
(...)
Outubro de 2001


51 Luta Popular, nos. 1 e 2, Fevereiro e Março de 1971.
52 O Anti-Colonialista, no. 8, 1ª. quinzena de Fevereiro de 1974.

49 Os Povos das Colónias Vencerão!”, no. 1, Fevereiro de 1973.
50 O Grito do Povo, no. 1, Dezembro de 1971, p. 12.

1 comentário:

Jaime Pereira disse...

Caro Filipe
Uma História recente que nos custou bem cara!
Por onde andarão muitos dos anti-fascistas, democratas e revolucionários mencionados no texto?
Já para não falar dos grandes dirigentes e "educadores do povo"... Um pelo menos tem casa conhecida em Bruxelas.