1970 – JULHO (* 1)
ESCLARECIMENTO DE UM FACTO
O Papa recebeu Agostinho Neto, Presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola, Amílcar Cabral, Secretário Geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde, e Marcelino dos Santos, Presidente do Comité de Coordenação da Frente de Libertação de Moçambique, no dia 1 de Julho de 1970.
Paulo VI recebeu os três dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de África, acompanhados da Srª Marcella Glisenti, presidente da secção italiana da Présence Africaine, em privado, na sala dos Paramentos, logo a seguir a uma audiência a peregrinos.
O informador oficial do Vaticano, Monsenhor Vaillane (que se demitiu do cargo imediatamente após os acontecimentos que se seguiram àquele facto) declarou que os três dirigentes falaram com o Papa, sete a oito minutos, com a intervenção de um intérprete.
Mais tarde o mesmo porta-voz afirmou que o Papa é defensor da justiça social e da independência dos povos e que tinha recomendado o uso de métodos pacíficos e salientou que o Vaticano não tentara, de maneira nenhuma “dissimular” a entrevista, como disseram certos jornais. Como audiência que era de “ beijamão ”, não tinha de ser publicada pelo “ Osservatore Romano”.
O “ Osservatore Romano “, jornal oficioso do Vaticano, em nota não assinada no dia 4 de Julho, afirma que o Papa, “...como parte da sua missão, recebe quem quer que seja que lhe peça conforto da sua bênção. O mesmo se passou com as pessoas em questão que, dentro de um contexto estritamente religioso da audiência colectiva semanal, puderam aproximar-se do Papa. O Santo Padre dirigiu-lhes palavras de saudação e exortação de fidelidade aos princípios cristão em que foram educados”.
O mesmo jornal diz que Paulo VI recebeu os dirigentes africanos “..na sua qualidade de cristâos “. Qualificou-os como “ rebeldes “ e referiu-se à Guiné dita portuguesa como “ Guiné Bissau “, rejeitando a designação oficial de Guiné Portuguesa.
( France-Press e Reuter, agências noticiosas; jornais “Le Monde”, “Le Soir” da Bélgica, “The Gardian”, “Ya” ).
A MESMA NOTICIA EM PORTUGAL (COM CENSURA PRÉVIA)
Este facto do dia 1 de Julho, por proibição da censura prévia à Imprensa, só foi noticiada em Portugal no dia 5 do mesmo mês:
“ Perante a extrema gravidade de tais notícias, entendeu o Governo não dever perturbar a consciência dos portugueses antes de serem esclarecidos os factos “. ( nº2 da Nota do Ministério dos Estrangeiros ).
Jornal “ A Voz “, dia 5 em Nota da Redacção à nota oficiosa do Ministério: “ Havia dias que o facto era conhecido, apesar de não publicado. Evidentemente, os três chefes terroristas incluíram-se num grupo de pessoas que tinham audiência colectiva. Era fácil. Evidentemente que os chefes terroristas, que não são católicos e não querem saber da religião para nada, não iam procurar “ o conforto da benção pontifícia “ mas sim uma oportunidade de propaganda internacional. É possível que algum funcionário do Vaticano lhes tenha facilitado o acesso, facto que será possível averiguar. Ver-se-à.
Marcelo Caetano, falando ao País, no dia 7:
“... Em todo este caso se revela, mais uma vez, a diabólica perfídia com que os nossos inimigos manobram contra Portugal e contra a sua política ultramarina.
“ Aproveitando um acto de rotina da vida do Pontífice, como é audiência colectiva semanalmente concedida aos visitantes, infiltram-se os terroristas em S. Pedro, colocam-se no caminho do Papa “ como católicos e cristãos “, travam com ele um diálogo que mal se ouve, e tiram depois daí efeitos espectaculares para comprometerem o nosso País “.
Em Angola:
O arcebispo de Luanda, falando ao jornal “ Província de Angola “: Estou certo de que se o Santo Padre tivesse sabido da sua identidade, antes da audiência, não os teria recebido... “ (Telegrama de Luanda 6, no Diário de Noticias de dia 7).
Porém, Rádio Vaticano, em 6, comentando a crise: “... acentuou que as audiências do Sumo Pontífice não têm lugar sem terem sido previamente aceites “ (O Primeiro de Janeiro de 8 Julho)
Em Moçambique
O jornal da arquidiocese de Lourenço Marques, financiado pelo Governo “ DIÁRIO “, insere o texto da comunicação do Chefe do Governo, publicando, a oito colunas, o seguinte título: “ Paulo VI condena e não abençoa terroristas “. ( Lusitânia, 8 Julho )
O jornal “ Notícias da Beira “, actualmente nas mão do grupo capitalista em que são preponderantes o Banco Nacional Ultramarino e o trust Champalimaud, intitulava, a cinco colunas, no dia 6 de Julho: “ Quarta-feira de trevas nas câmaras do Vaticano – a imprensa portuguesa reage vigorosamente à audiência concedida pelo Papa aos chefes terroristas “.
REPARE COMO OS FACTOS FORAM RELATADOS EM PAÍSES ONDE A IMPRENSA É LIVRE DE CENSURA PRÉVIA GOVERNAMENTAL E EM PORTUGAL, ANGOLA E MOÇAMBIQUE ONDE ESTÁ SUJEITA À DITA CENSURA.
ALGUMAS CONTRADIÇÕES DO RELATO FEITO, ESTÃO SALIENTADAS PELOS NOSSOS SUBLINHADOS.
CONFERÊNCIA DE IMPRENSA DADA PELOS LIDERES
Os líderes recebidos 4ª feira por Paulo VI, deram na 5ª de manhã uma conferência de imprensa numa livraria do centro de Roma para fazer o ponto da audiência.
Na ausência de Agostinho Neto, que já tinha deixado a capital italiana, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos relataram em francês as declarações do Papa. Segundo eles, Paulo VI disse compreender as dificuldades com que se debatem os povos africanos por eles representados. O Papa expressou o desejo de ver solução pacífica para estes problemas e afirmou que a questão mais importante de momento é a promoção de homens que possam conduzir a evolução da situação.
No fim da audiência o soberano Pontífice entregou aos visitantes acompanhados por Mme Marcelle Glisenti, presidente da secção italiana de “ Presence Africaine “ uma cópia da Encíclica “ Populorum Progressio “. (*2)
Agradecendo ao Papa em nome do grupo, Amílcar Cabral fez notar que a encíclica lhe era bem conhecida e exprimiu o voto de que os católicos portugueses “ que continuam a massacrar as populações africanas “ a tivessem em conta. Amílcar Cabral, líder da luta armada pela independência da Guiné Portuguesa comentou assim a visita ao Vaticano:
“ Esta audiência é um facto político e moral da mais alta importância perante a hierarquia portuguesa que apresenta a guerra colonial como a defesa da civilização cristã. A audiência papal demonstra ainda que a Igreja apoia a liberdade e independência dos povos que sofrem; os católicos portugueses que, como o Bispo do Porto, estão de acordo com isto, vão ficar mais reconfortados e encorajados .
Marcelino dos Santos, chefe da insurreição em Moçambique, sublinhou pelo seu lado que Paulo VI reza pelos povos que lutam pela sua liberdade e formulou a esperança de que os católicos portugueses compreendam esta mensagem pois, insistiu, Paulo VI recebeu os representantes legítimos de Angola, Moçambique e Guiné.
Interrogado sobre o cunho comunista de que se havia revestido a conferência internacional que acaba de terminar em Roma, Amílcar Cabral declarou que a ajuda recebida dos países do Leste não era massiça, que as organizações de libertação esperam tento ajuda de Leste como do Oeste e que não havia o risco de os países africanos escaparem a um imperialismo colonial para caírem num imperialismo ideológico: combateremos os soviéticos da mesma forma que combatemos os Portugueses se um dia tentassem impor-se a nós “.
( LE SOIR, Bruxelas 4/7/70 e LE MONDE 4/7/70)
OUTRAS NOTICIAS E COMENTÁRIOS
O jornal italiano, liberal de direita, IL TEMPO , no dia 3, diz que “ os rebeldes comunista anti-portugueses recebidos pelo Papa “ foram recebidos no Vaticano depois de se terem encontrado com as personalidades mais importantes do Partido Comunista italiano, do PSIUP (Partido Socialista italiano de Unidade Proletária) e do PSI (Partido Socialista Italiano). Este jornal afirma que “ o Papa conhece não só os nomes e os apelidos de cada um deles mas também as suas qualidades políticas e as suas actividades revolucionárias “.
Para LA STAMPA, a diplomacia vaticana não compreendeu todo o alcance da audiência, mas Paulo VI tomou a sua decisão sozinho e com conhecimento de causa, “ cansado de vêr os que detêm o poder, obsequiosamente surdos aos seus avisos “.
(Leia de novo, o discurso de Marcelo Caetano)
Para IL GIORNO (democrata-cristão da esquerda) “ o Papa quis dissociar a Igreja dos regimes que oprimem o homem “ (Brasil: a carta pontifical particular dirigida ao General Medici contra a tortura; Paraguai: a rotura oficial com o regime católico).
Foi na sua qualidade de revolucionários, conclui IL GIORNO, que os três chefes africanos foram recebidos.
O órgão comunista L’UNITÀ, publica, por seu lado, quatro fotografias: a do Papa e a dos três chefes revolucionários. Para o órgão do partido comunista italiano, trata-se “ de um acontecimento de alcance histórico... O Papa recebeu os dirigentes populares em Portugal, governado por um regime clérico-fascista “. Assim escreve L’UNITÀ, “ Paulo VI põe um problema aos católicos portugueses que, até agora, têm apoiado o colonialismo.
(FRANCE-PRESS, dia 3)
O jornal “EXPRESS” do Daomé, orgão governamental, afirma hoje que Paulo VI deu à Igreja um novo impulso na direcção da história moderna concedendo audiência a três dirigentes dos movimentos nacionalistas dos territórios ultramarinos portugueses visando novamente a justiça e igualdade social de todos os homens, neste vale de lágrimas. O Vaticano deu uma nova dimensão às velhas noções temporais da Igreja militante e da Igreja triunfante, afirma o diário num editorial.
(REUTER, dia 4)
Também a Imprensa portuguesa no COMÉRCIO DO PORTO de 6/7/70 se transcreve a seguinte noticia de Georges Albert Salvan, correspondente da France-Presse:
“ O dia 1 de Julho de 1970 ficará, segundo todas as probalidades, uma data recordada pelos historiadores do terceiro mundo.
Pela primeira vez, a mais alta força moral do Ocidente e o chefe espiritual de 600 milhões de católicos recenseados no mundo, ousou fazer aquilo a que se recusaram os mais importantes dirigentes políticos que se afirmam católicos. O Papa Paulo VI recebeu – e abençoou – três chefes revolucionários de côr, proscritos e perseguidos como comunistas e criminosos de direito comum por uma nação europeia, pilar secular da Igreja. Mais ainda: dois dias antes, esses três africanos de Angola, Moçambique e da Guiné tinham denunciado publicamente, em Roma, cidade do Papa, o tão católico Portugal, e estigmatizado o auxilio armado que lhe dispensa a tão ocidental NATO em àfrica...”.
DA AGÊNCIA FRANCE-PRESS dia 5/7
“ A supresa das pessoas não deixa de me espantar: será que não conseguem compreender o Papa ?? – confiava-nos recentemente um importante prelado liberal da Cúria.
Há anos, prosseguiu, que os “contestadores da direita e da esquerda difundem uma imagem infantil e deformada de Paulo VI. O Papa da Encíclica “Populorum Progressio” e das visitas aos bairros de lata é um é um dos censores mais lúcidos da sociedade de consumo. As suas criticas aos “países rico”, as suas intervenções a respeito do Vietname e do Médio Oriente, as suas viagens e discursos, mostram que ele tem consciência do facto de metade dos católicos viverem no Terceiro Mundo, sector esse que necessita da mais urgente assistência económica “.
VATICANO 5/7
“ Finalmente os seus discurssos no Uganda mostraram que a Igreja é a favor da descolonização e da independência dos povos. O tema do próximo “Dia Mundial” lançado pelo Vaticano será “ A Luta Contra o Racismo”. Se o Ocidente escutasse melhor Paulo VI, veria que ele não louva os Governos porque se afirmam católicos.
Isso foi visto no Brasil, a respeito das torturas. Na verdade, o Papa permanece simplesmente fiel a si mesmo. Foi o que fez na quarta-feira, ao pronunciar-se contra a violencia perante os seus três interlocutores africanos, que por seu turno falaram de bombardeamentos portugueses com Napalm e de atrozes torturas”.
(FRANCE-PRESS 5/7)
“ Paulo VI pronunciou no domingo a sua primeira alocução depois da audiência dada na quarta-feira a três líderes revolucionários da África portuguesa e do chamamento do embaixador de Portugal junto da Santa Sé.
Antes de dar a sua bênção dominical da janela do seu gabinete, o Papa declarou expressamente: “ Como fechar os olhos sobre o que se passa no mundo, sobre o que pesa sobre a nossa sociedade, sobre o equilíbrio necessário ao progresso e à paz?? Graves ameaças misturam-se com boas esperanças: para umas como para outras não podemos desprezar a ajuda de Deus “.
Por sua vez a Rádio Vaticano declarou expressamente: “ Pacificação – ou libertação pelas armas, conforme o lado onde nos situamos – é fonte de miséria e de morte, como qualquer outra forma de guerra. Possam um dia Angola, Moçambique e Guiné, conhecer enfim a paz na justiça. O problema é de novo posto à consciência cristã “.
Anteriormente a Rádio Vaticano havia dito que:
“1º A audiência dos “chefes dos três movimentos mais importantes da luta contra as autoridades portuguesas de África” não podia ter tido lugar senão depois de ter sido aceite.
2º Os delegados do Comité de Descolonização da ONU e de numerosos países assistiam com os líderes à Conferência Anti-colonialista de Roma na passada semana.
3º A atitude da Igreja perante a independência das novas nações é constante e bem conhecida pelos documentos do Concílio e Encíclicas e alocuções de Paulo VI. “.
(LE SOIR dia 7/7/1970, terça-feira
(*1) Documento destribuido em Porto, Lisboa e Coimbra, assinado por "Um Grupo de Cristãos" em Julho/Agosto de 1970.
(*2) Encíclica de que a sua divulgação e militância, mesmo por juventude pertencente à JOC (juventude operária católica) e JUC (juventude universitária católica) sofreu represão da DGS/PIDE. (Pelo menos na região do Porto).
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Outros documentos a consultar:
---"Áfricas Terrarum" de Paulo VI, o primeiro documento pontifício a defender a unidade cultural da África Negra.
---"A Igreja no Mundo deste Tempo" do Concílio Vaticano II, que se refere ao problema da Guerra, Independência dos Povos e da Exploração dos Pobres.
---"O meu testemunho" Aristides Pereira
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Nota do editor: Factos que contrariam à margem dos sentimentos humanos individuais, a "sagrada" hipocrisia das romagens, homenagens e discurssos de hoje de alguns homens de ontem, fugindo, evitando ou deturpando intencionalmente a discussão (por desconhecimento ou má fé) no confronto de factos passados que ceifaram tantas jovens vidas, e que ainda hoje renegam alguns outros, de toda uma geração, apelidando-os de "comunistas" e "traidores" que tambem simultâneamente, tanto deram de si para que aquelas vidas não servissem de carne para canhão, numa guerra injusta e históricamente perdida.
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