A POLÍTICA COLONIAL FASCISTA, SUSTENTÁCULO E JUSTIFICAÇÃO DO REGIME, ACABOU POR PROVOCAR A SUA PERDA - QUANDO O BECO SEM SAÍDA DAS CONTRADIÇÕES GERADAS PELO COLONIALISMO PORTUGUÊS O FECHOU SOBRE SI PRÓPRIO.
A relativa – e, à primeira vista, surpreendente – facilidade com que o golpe militar de 25 Abril desmantelou a armadura defensiva e repressiva do aparelho fascista, viria revelar-nos subitamente a imagem exemplar de um regime devorado pelas suas próprias contradições. Contradições cuja extensão e profundidade eram mascaradas por um aparato político e militar de facto impotente, mas ainda aparentemente sólido e eficaz.
O fracasso da intentona das Caldas de Rainha, apenas um mês antes, viera, aliás, radicar a convicção de que o regime, marcando então uma viragem ainda mais à direita, se encontrava suficientemente firme para fazer face a qualquer ameaça que pudesse pôr em risco a sua sobrevivência. Tratava-se afinal de um canto de cisne: os corpos médios da hierarquia militar haviam conseguido, entretanto, consolidar o isolamento entre a autoridade dos altos comandos e a base do exército. Estavam reunidas as condições para a queda do regime.
DO IMPASSE À CORROSÃO
Prisioneiro de si mesmo, incapaz de adaptar o aparelho de Estado às novas linhas de força do capitalismo português, que impunham uma mudança de estratégia colonial (1) o regime encontrou-se perante o impasse militar que o avanço irreversível dos movimentos de libertação, sobretudo na Guiné e em Moçambique, tornava dia a dia mais evidente. Ora, esse impasse não podia deixar de repercutir-se fundamente nas fileiras do exército, sobretudo entre os quadros militares que, em contacto mais directo com as realidades da guerra - ao contrário do que sucedia com as altas patentes -, se apercebiam progressivamente da impossibilidade de uma vitória no campo das armas. Por outro lado, as necessidades do recrutamento em massa e a carência de quadros – impondo a rápida promoção estranhos à hierarquia militar clássica, como é o caso dos milicianos -, vieram abalar a coesão interna do exército. As condições objectivas e subjectivas propícias a uma agudização das contradições provocaram, assim, um processo de corrosão acelerada e profunda no monolotismo tradicional do bloco militar.
Por outro lado, o bloqueamento da fase inicial de “liberalização” marcelista mostrou até que ponto as estruturas do regime e o peso das suas bases de apoio tradicionais não suportavam – sem se exporem ao risco da desagregação – as consequências que as adaptações políticas às novas realidades não poderiam deixar de produzir. O dilema do regime acabou por tornar-se num beco sem saída. Ou aceitava essas consequências e condenava-se a desaparecer como regime; ou recusava-as, como efectivamente sucedeu, e via-se obrigado a ter de aceitar a sua queda.
O PESO DOS MITOS IDEOLÓGICOS
No plano “ultramarino”, a incapacidade em operar a passagem a nível político – apesar das titubeantes adaptações efectuadas no estatuto das “províncias de além mar” – da fase do colonialismo clássico para uma fase neocolonial, deriva também dos próprios mitos ideológicos que, criados e persistentemente difundidos pelo regime como justificação de legitimidade para a sua política de “unidade nacional”, não podiam deixar de fazer com que o feitiço se voltasse contra o feiticeiro. Com efeito, o regime acabou por ver a sua sobrevivência condicionada pela perpetuação dos mitos com que irreversivelmente se identificara. Por outras palavras: a falência desses mitos arrastariam consigo a falência do regime.
A defesa intransigente do mito da “integridade territorial” do Portugal “pluri-continental e multi-racial” não admitia excepções. Aceitar, por exemplo, a independência da Guiné (território sem interesse económico, numa perspectiva de exploração colonialista) era abrir uma brecha fatal, a breve prazo, na coerência do edifício ideológico com que o imperialismo português procurava justificar-se aos olhos de uma Nação mantida sob pressão constante das “verdades indiscutíveis”. Ora a manutenção da Guiné, para além de não ter razão de ser para a exploração económica colonial, mostrava-se cada vez mais insustentável no plano militar.
A OPERAÇÃO “ULTRA”
A intentona projectada recentemente pelos “ultras – e que em Dezembro passado provocou considerável efervescência nos meios politicos e militares – procurava uma saída desesperada para esse impasse. Tratava-se, em principio, de aceitar, pragmaticamente, a “entrega” da Guiné ao PAIGC, concentrando e intensificando, entretanto, o esforço militar em Moçambique e Angola, de acordo com a estratégia, defendida nomeadamente por Kaulza de Arriaga e Adriano Moreira, de construção de um grande bloco África Austral-Brasil-Portugal. Só que o Brasil, virado decididamente para relações directa com Estados da faixa litoral africana, não parecia disposto a comprometer o futuro dessas relações em troca de uma aventura de horizontes nebulosos , tanto mais que o desenvolvimento da acção dos movimentos de libertação nos territórios sob dominação portuguesa e nos Estados racistas sul-africanos, além da pressão diplomática internacional, ameaçavam os participantes dessa aventura de um perigoso isolamento na cena mundial. Aliás, a nova fase política do regime brasileiro aberta com a presidência do general Ernesto Geisel, veio afastar ainda mais as já de si remotas hipóteses de concretização do projecto. Finalmente, as manobras de sedução desenvolvidas junto dos meios mais activos do exército português, para captar apoio a um «putsch» encabeçado pelos sectores extremistas da reacção, erraram completamente o alvo: as tendências dominantes, porque mais dinâmicas no seio de um aparelho militar esclerosado, polarizavam-se já à volta do “movimento dos capitães” tendo como guia inspirador o general Spínola, a quem a experiência concreta da guerra da Guiné fizera compreender a impossibilidade de uma solução militar para o problema colonial. E a politização crescente do movimento, ultrapassando reivindicações estritamente profissionais, foi favorecida pela hostilidade cada vez mais acentuada que se lhe deparou por parte do aparelho fascista, forçando os seus adeptos a uma actuação semi-clandestina. Também aqui, a repressão faria voltar o feitiço contra o feiticeiro.
O PRINCIPIO DO FIM
De facto, quando os “ultras” parecem regressar em força depois do afastamento dos generais Spínola e Costa Gomes da chefia do Estado Maior General das Forças Armadas e do fracasso sequente da “intentona” das Caldas, esta última guinada ainda mais à direita do regime ( que Marcello Caetano, numa das suas novas piruetas na corda bamba do poder, sancionara em desespero de causa ) era apenas o principio do fim. O avolumar da tensão entre as fileiras militares era a tal ponto pronunciado que o regime se vê constrangido à prudência e à moderação: é isso que ressalta do estilo significativamente brando e paternal com que Marcello Caetano se refere, na sua última “conversa em família”, ao levantamento da Caldas da Rainha. A eminência da eclosão de um movimento militar crepitava em surdina, de novo, nas últimas semanas. Mas o aparelho militar “fiel” e escudo repressivo do fascismo já se encontravam minados pela base, para poderem oferecer resistência duradoura e eficaz. O derradeiro golpe teatral de Marcello Caetano – prisioneiro também das ilusões em manter as rédeas do poder, jogando alternadamente com “gregos” e “troianos” do regime, sem se aperceber de que o oportunismo é uma carta viciada – chegou a ser confundido com uma posição de força: mas a corte política marcelista, instalada nas cadeiras de São Bento em “representação da Nação”, ou no comando da administração pública, não passavam já de tristes figurantes de uma ópera-bufa.
UM FRUTO PODRE
É assim que o regime cai como um castelo de cartas. Os focos de reacção ao golpe de 25 de Abril acabaram por limitar-se, sobretudo, à policia política. A facilidade com que o movimento militar triunfante controlou quase de imediato a situação nas colónias – quando se chegara a levantar a possibilidade de resistência – veio mostrar que também aí o terreno se encontrava minado.
Foi deste modo que o país assistiu à derrocada de um regime que ainda dias atrás, escudado nas aparências espectaculares de um poder que já não controlava verdadeiramente, parecia ainda capaz de fazer frente de novo ao choque das tensões avolumadas. Mas embora a casca escondesse a peçonha, o fascismo caiu da árvore fatal das suas contradições, como um fruto podre.
(*) VICENTE JORGE SILVA
( 1 ) Contrariamente a algumas análises apressadas e ligeiras de certa imprensa estrangeira ( Le Monde, por exemplo ) o grande capital, particularmente os dois grupos principais – CUF e Champalimaud -, declarava decididamente adepto de uma estratégia neo-colonialista. As contradições entre a política do regime e os interesses do grande capital, que ultimamente se vinham agudizando ( as recentes criticas de António Champalimaud à política económica do governo de Marcello Caetano, que a censura procurou silenciar, mostrando-se, a esse respeito, fortemente elucidativas ), não são estranhas também à vulnerabilidade do aparelho fascista.
A desadaptação do modelo político em relação às novas realidades dominantes a nível económico, de que a lei de pagamentos inter-territoriais era instrumento – ao consagrar a liquidação da exploração colonial primitiva, de “saque” – foi igualmente sintomática das contradições apontadas acima.
( * ) Texto de Vicente Jorge Silva, publicado em " Comércio do Funchal " de Maio de 1974. Com a devida vénia.
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